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Nas últimas semanas, as redes sociais foram invadidas por imagens geradas por IA que simulam o estilo visual do Studio Ghibli. Crianças, pets, casais, todos inseridos em cenários etéreos, com traços que remetem diretamente a obras como “A Viagem de Chihiro” ou “Meu Amigo Totoro”. A tendência revela muito mais do que um filtro estético: ela escancara um dilema ético e econômico sobre autoria, criatividade e o futuro do valor simbólico na era das máquinas. E, por isso mesmo, não consegui ignorar a pergunta que me move desde então: o que essa febre diz sobre o momento cultural e criativo em que estamos inseridos?
Quando a IA veste o figurino da arte
A popularização de ferramentas generativas acelerou a produção de imagens que evocam estilos consagrados da história da arte, sem que os artistas originais tenham sido consultados ou remunerados. No caso da estética Ghibli, a comoção é compreensível — ela ativa memórias afetivas, mundos idealizados e narrativas com alma. Mas o ponto de fricção é justamente esse: pode a alma ser sintetizada em pixels por uma máquina?
Conversei com Helena Klang, doutora em Comunicação pela UERJ e especialista em desenvolvimento artístico nos Estúdios Globo. Sua resposta foi clara: “A criação artística é fruto de subjetividade. E subjetividade precisa do corpo, das emoções, da experiência vivida. A máquina não sente, não elabora. Ela é instrumento, não origem.” A IA, portanto, pode ser uma ferramenta poderosa — mas não uma criadora autônoma. Sem a intenção humana, o prompt, o direcionamento, ela não gera sentido. Só forma.
Estilo é identidade — e identidade tem dono
O problema se aprofunda quando entendemos como essas IAs são treinadas. Seus modelos absorvem bancos imensos de dados visuais e textuais, muitas vezes usando, sem autorização, obras protegidas por direitos autorais. É aqui que o debate sobre autoria precisa sair do campo simbólico e entrar no jurídico e econômico.
“O estilo carrega a identidade de quem criou”, afirma Helena. “Se você pede uma imagem ‘à moda de Klimt’, não foi a IA que criou — foi o Klimt. O estilo é dele.” A autoria, nesse caso, não é uma abstração: é a base do direito à remuneração, ao reconhecimento e à sustentabilidade da carreira artística.
Ignorar esse princípio é legitimar um modelo em que poucos concentram os lucros, enquanto muitos têm sua obra diluída, replicada e monetizada sem créditos. O que está em jogo não é a justiça individual — é um investimento cultural, da inovação real e do patrimônio criativo de longo prazo.
Helena é direta ao nomear essa discussão: “Muita gente pode ser criativa, mas nem todo mundo é artista. O artista cria estilo, imprime identidade. E é isso que precisa ser protegido — não por saudosismo, mas por visão de futuro. Se não fizermos isso, o que vamos deixar como patrimônio? Um mar de mediocridade?”
A conta (in)visível do conteúdo gerado por IA
Enquanto usuários se encantam com os resultados visuais, raramente se discute o que há por trás: alto custo energético, uso massivo de dados de terceiros, precarização do trabalho criativo e ausência de regulação. A IA parece mágica, mas não é neutra.
Quando pagamos para gerar uma imagem com base em estilos alheios, estamos pagando para usar o que alguém criou: “Se a IA cobra pelo serviço e usa o acervo de outros artistas para entregar o produto, parte dessa receita deveria ir para eles”, defende Helena. No caso de obras em domínio público, tudo bem. Mas muitas criações utilizadas hoje estão protegidas por lei — e por uma razão muito clara: garantir ao autor o tempo e os meios para continuar criando.
Não é nostalgia, é estratégia
Proteger o autor é proteger o futuro. Ao remunerar quem inova hoje, garantimos um acervo de qualidade disponível amanhã. Se negligenciarmos esse ciclo, o que restará em domínio público daqui a algumas décadas? Um mar de cópias sem alma? Uma cultura moldada por algoritmos e desprovida de estilo?
Como sociedade, precisamos decidir que tipo de inovação queremos fomentar. Uma que extrai, copia e acelera sem critério ou uma que reconhece o valor da criação humana como um ativo estratégico e insubstituível?
O que está em jogo
Na era da IA generativa, quem detém os dados detém o poder. Mas quem imprime o estilo detém a autoria. E é essa autoria que precisa ser recolocada no centro do debate. Porque, ao contrário do que dizem, nem todo mundo é artista. Criatividade é abundante. Estilo, não. Estilo é o que nos distingue. E, portanto, o que nos torna valiosos.
Se não entendermos isso agora, corremos o risco de olhar para o futuro e ver não um mundo encantado como os de Miyazaki, mas um cenário sem alma — belo, porém vazio.
Ao final dessa jornada entre Ghibli e algoritmos, entre poesia e prompt, me parece que a pergunta mais importante talvez seja: que tipo de imaginário coletivo queremos cultivar? Um imaginário construído por experiências vividas, falhas, gestos, escolhas? Ou um imaginário pasteurizado, sem autoria, gerado por demanda e esquecido na próxima trend?
A inteligência artificial pode ser uma aliada poderosa. Mas só se não perdermos de vista aquilo que nenhuma máquina consegue simular: a vivência, a memória, o acontecimento. É aí que mora a arte. E é isso que precisamos proteger.
Iona Szkurnik é fundadora e CEO da Education Journey, plataforma de educação corporativa que usa Inteligência Artificial para uma experiência de aprendizagem personalizada. Com mestrado em Educação e Tecnologia pela Universidade de Stanford, Iona integrou o time de criação da primeira plataforma de educação online da universidade. Como executiva, Iona atuou durante oito anos no mercado de SaaS de edtechs no Vale do Silício. Iona é também cofundadora da Brazil at Silicon Valley, fellow da Fundação Lemann, mentora de mulheres e investidora-anjo.
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