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Um dia normal na vida de María Sance começa bem cedo, por volta das 6 horas, quando prepara o café da manhã para seu filho Juan Cruz e uns mates para ela e o enólogo, seu marido, Alejandro Vigil. Em seguida, María vai para a Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Nacional de Cuyo (UNCuyo), em Mendoza, na Argentina, onde é professora e pesquisadora há 22 anos.
Suas tardes são dedicadas a reuniões relacionadas ao Universo Vigil, conjunto de empreendimentos enogastronômicos em Mendoza, na Argentina, idealizado pelo por Vigil. María é responsável por preparar material para as aulas, gerenciar a horta, se reunir com produtores, participar de encontros da Associação Empresarial de Hotéis e Gastronômicos de Mendoza (AEHGA), atividades como presidente do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Gastronômico de Mendoza da Universidade Nacional de Cuyo (UNCuyo), e de ações da Fundação Chachingo e Madre Coraje, entre outras atividades. Ela é vice-presidente da AEHGA e presidente do UNCuyo.
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Como pesquisadora e docente na universidade, ela tem sido fundamental na promoção de práticas agrícolas que priorizam a biodiversidade dos cultivos e o comércio justo. María vem há algum tempo dedicando grande parte de sua vida a programas que buscam transformar o modelo agrícola tradicional em um modelo regenerativo, revitalizando os solos e promovendo uma produção mais harmônica com o meio ambiente.
Um de seus projetos mais notáveis é o Festival do Tomate, em que a produção agrícola se encontra com a gastronomia, e os chefs locais desempenham um papel fundamental na promoção dos produtos regionais. “A relação entre gastronomia e agricultura é crucial para fomentar o respeito pelos produtos locais e garantir que agricultores e cozinheiros façam parte de um ciclo virtuoso de respeito pela terra”, afirma María. Este evento reuniu uma grande quantidade de produtores locais de tomate, e não apenas fomenta a economia local, mas também valoriza o trabalho dos pequenos agricultores.
O Festival do Tomate teve sua primeira edição em fevereiro de 2023 com a participação de 700 pessoas e de chefs renomados, como Rodolfo Guzmán, do restaurante chileno “Boragó”, Christophe Krywonis, Nadia Harón, Sebastián Weigandt do “Azafrán” e Francisco Rosat do restaurante “Lo de Fran Cocina de Mar”.
A edição deste ano teve um acréscimo de 100 pessoas. Cada um dos chefs convidados ofereceu um prato com sua interpretação sobre o tomate. Os convidados tiveram a oportunidade de provar cerca de 15 propostas. Além deste festival, María lidera outros projetos de agricultura regenerativa, impactando muitas famílias que participam ativamente da produção sustentável. Suas iniciativas incluem a rotação de cultivos para melhorar a saúde do solo e o uso de práticas agroecológicas que promovem o menor uso de pesticidas e fertilizantes químicos. Graças a esses esforços, a produtividade dos solos aumentou em 30%, quanto reduziu o impacto ambiental.
Em entrevista à Forbes, ela contou como sua infância a direcionou para o presente e de que maneira sua formação científica é vital para conectar o teórico com o prático.
A sra. cresceu em um ambiente agrícola. Como essa experiência influenciou sua visão sobre o trabalho com a terra e o foco na agricultura orgânica e regenerativa na Casa Vigil?
Influenciou tudo. Ser filha de produtor me fez amar a terra, me tornar produtora, pesquisadora e gastrônoma. Foi determinante para a carreira que escolhi, e depois para começar a caminhar junto aos produtores com o Labrar, um projeto que idealizei que busca transformar o modelo agrícola tradicional em um sistema regenerativo.
Criado em 2014, desde o início, participaram 16 produtores que conseguiram comercializar cerca de 400 mil quilos de produtos agrícolas sob um modelo de comércio justo. Eles também recuperaram 20 hectares de terra e 30 produtores decidiram continuar no campo, preservando seus ofícios tradicionais. Além disso, o projeto ajudou a resgatar e reintroduzir 60 variedades de tomate no mercado, refletindo nosso compromisso com a biodiversidade.
Entendo que existe apenas uma forma de cultivar, que é respeitando os recursos, e por isso a visão regenerativa está presente em cada cultivo e com cada produtor com quem trabalhamos. Quase como um exercício diário, me detenho muito em conhecer as histórias por trás das pessoas, dos produtos, e acredito que isso vem de forma inata. A perseverança é nunca desistir; observar o entorno e sempre olhar com atenção. É aí que se encontram muitas respostas.
A sra. é doutora em Ciências Biológicas e pesquisadora. Como combina a formação científica com sua paixão pelo campo e pela produção agrícola?
Atualmente, a combinação é perfeita, porque todo o conhecimento que adquiri em minha formação posso aplicá-lo nos cultivos, nas variedades que selecionamos, na forma de cultivá-las. Com o Labrar, entendi que tudo o que havia estudado poderia transcender as paredes de um laboratório para ser aplicado no dia a dia da produção local.
No início, quando começamos o projeto Casa Vigil, não conseguia visualizar a conexão entre o que eu estava investigando e ter um restaurante. Era como usar chapéus diferentes dependendo do ambiente, e depois entendi que o chapéu era o mesmo, que todo aquele estudo poderia ser refletido no cardápio, na horta, na essência da Casa Vigil.
A Casa Vigil surgiu em março de 2015 e foi criada por mim e outras 4 pessoas: Alejandro, Constanza Hartung, Pablo Sance, Rosa Gonella. Pouco tempo depois, Yemina Lucero e Carina González juntaram-se a nós. Hoje, somos uma empresa familiar, com cerca de 700 funcionários. Por dia, recebemos cerca de 250 pessoas para almoço e jantar.
No seu projeto Labrar, a sra. promove o comércio justo e colabora com pequenos produtores. Qual foi o maior desafio ao tentar implementar um sistema mais equitativo na comercialização dos produtos agrícolas?
Não é fácil, já que o sistema de troca estabelecido até agora raramente se baseia na diversidade ou na forma de cultivo, mas basicamente no rendimento, em atender à qualidade mínima exigida. A proposta é reconhecer o valor agregado de determinados produtos e a forma como foram produzidos de maneira agroecológica. É entender que, se o produtor se comprometer a cultivar variedades menos produtivas, mas de melhor sabor e qualidade, o preço deve ser maior. O maior desafio é entender isso e, ao fixar um preço, sentar com o produtor para que ele receba a compensação adequada pelo produto que vende.
A sra. costuma ressaltar que trabalha para fomentar a agricultura regenerativa e sustentável. Poderia explicar como esse enfoque se integra no dia a dia e como beneficia tanto os produtores quanto os consumidores?
O paradigma implica que, para comer melhor, precisamos comprar melhor como consumidores e produzir melhor como produtores. Qualquer atividade que não se desenvolva seguindo princípios sustentáveis está trabalhando fora do sistema. Já não é possível produzir sem considerar integralmente todo o nosso entorno.
Na agricultura é o mesmo: produziu-se por muito tempo com uma visão que não era integral, e a agricultura regenerativa veio nos mostrar o panorama 360°, que busca planejar cada plantio, dar o tempo necessário para que o solo se recupere após cada cultivo, ajudá-lo com espécies que favorecem esses processos (adubo verde), e o não uso de químicos que afetam o equilíbrio dos ecossistemas e podem prejudicar a saúde humana.
Trata-se da incorporação de manejos alternativos, respeitosos e mais naturais. Cada atividade deveria ser regenerativa, mensurada e consciente dos recursos que afeta ou consome. Com essa visão, todos se beneficiam: o produtor, que trabalha integrando o ambiente em sua atividade diária, para obter matérias-primas de ótima qualidade, saudáveis, livres de químicos nocivos; e o consumidor, que ganha ao poder acessar esses tipos de matérias-primas, melhorando sua alimentação.
No Labrar, a sra. trabalha para resgatar a biodiversidade dos cultivos, como o tomate. Qual é a importância de manter a diversidade genética e quais desafios a Argentina enfrenta nesse sentido?
A conservação da biodiversidade é muitas vezes realizada por pequenos produtores que mantêm espécies ou variedades delas ao longo das gerações, preservando não apenas o recurso biológico essencial, mas um legado cultural sobre como cultivá-las e em que época, de acordo com a região geográfica onde se encontram, como fertilizar o solo e até a conexão com a terra, com a Pacha. Resgatar, promover e manter a biodiversidade é proteger nosso patrimônio biológico, social e cultural.
Os bancos de germoplasma por todo o país são a forma mais organizada de preservação da biodiversidade junto aos guardiões de sementes. De nossa parte, trabalhamos em conjunto com o Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA) e a Faculdade de Ciências Agrárias da UNCuyo, mantendo cultivos resgatados por diversos grupos de pesquisadores. O desafio está em incentivar os guardiões de sementes e apoiar os bancos de germoplasma para que possam cumprir essa grande missão.
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A sra. organizou um festival que homenageia o tomate e reflete seu profundo vínculo com esse cultivo. Como acredita que este evento está evoluindo na comunidade e o que espera a longo prazo com a iniciativa?
O Festival do Tomate é a grande festa do tomate; é celebrar a colheita e o encontro entre produtores, cozinheiros e mendocinos. Cada um com seus produtos, cada um com suas propostas. A jornada final do festival está prevista para ocorrer entre a última semana de janeiro e os primeiros dias de fevereiro de 2025, coincidindo com o período em que as famílias mendocinas se reúnem para fazer “molho de tomate caseiro”, com o intuito de ter a fruta durante todo o ano.
É uma tradição de nossa província, uma questão identitária. Estamos muito felizes com o que aconteceu com este encontro. Para mim, não foi nenhuma surpresa, sabia que era questão de tempo e de coragem para propor o tomate como protagonista. Defino como a união de “comunidade e criatividade” com o tomate como exponente único.
É uma festa onde todos somos, de alguma forma, anfitriões. Os mendocinos estavam esperando por essa homenagem, por isso teve tanta boa recepção. Somos a terra de tomate, isso faz parte da nossa identidade cultural. A longo prazo, temos como objetivo colocá-lo no calendário de festivais da Argentina.
Na segunda edição, o evento foi declarado de Interesse Turístico pelo Ente de Turismo de Mendoza. Isso, somado à grande participação de público, me faz pensar que, em alguns anos, será possível levar o evento para fora do espaço da Casa Vigil e torná-lo cada vez mais popular. Vejo o festival como um evento antropológico, trabalhamos com essa visão, por isso acredito que ele se consolidará ano após ano.
De acordo com os dados da safra 2023/24, fornecidos pela Associação Tomate 2000, em relação ao tomate industrial, a produção é suficiente para cobrir a demanda interna argentina, de 13 kg por habitante/ano, e gira em torno de 630 mil toneladas. A produção é em valores semelhantes.
Existe uma exportação de 20 mil toneladas, o que gera uma insatisfação na demanda interna, levando à necessidade de importar produtos de tomate (provenientes da Itália, tomate pelado inteiro, e algo de pasta de tomate do Chile). É sem dúvida uma questão de mercado. Devemos produzir 660 mil toneladas para satisfazer a demanda interna e de exportação.
Existe uma grande conexão entre a gastronomia e seu projeto. Como a sra. acredita que as colaborações com chefs podem mudar a percepção do consumidor sobre produtos locais e orgânicos?
A conexão entre gastronomia e produção é fundamental e, sem dúvida, Labrar significa produção, raízes, agrobiodiversidade, e produzir em equipe alimentos de qualidade dentro de um sistema de comércio justo. Os chefs têm um papel essencial ao dar visibilidade aos ingredientes identitários, ao incluí-los em seus pratos e ao construir a história por trás de cada preparação culinária.
Quem se senta à mesa de um restaurante está aberto a incorporar informações sobre as origens de sabores conhecidos e de novos também. É uma grande oportunidade para aprender a comer melhor, de forma mais variada, valorizando o que é local, saudável e produzido com sacrifício e paixão, de maneira amigável ao meio ambiente.
A sra. é mãe de dois filhos que também estão crescendo entre vinhedos e cultivos. Quais valores sobre a terra e a agricultura que gostaria de transmitir a eles e por que acredita que é importante manter esse vínculo com a terra?
Quando decidimos nos estabelecer em Chachingo, bairro rural de Mendoza, foi com a convicção de criar nossos filhos em um ambiente natural e produtivo, onde as tradições são preservadas e o cuidado do meio ambiente e dos recursos seja prioridade para qualquer atividade.
Mantivemos a tradicional horta familiar, que Ale e eu vivemos desde crianças, para que nossos filhos, Juan e Giuliana, entendessem o valor de produzir nossos próprios alimentos e desfrutarem de tudo aquilo que vivemos na infância e que sem dúvida foi determinante para as carreiras que escolhemos.
O vínculo com a terra se sente e se transmite, através do amor à terra e tudo o que dela provém, com o trabalho conjunto com produtores, como uma forma de entender que isso é feito em equipe e que todos colocam sua energia na mesma direção, produzindo alimentos regionais, saudáveis, nutritivos para o nosso consumo e de todos os que nos visitam.
A Casa Vigil cresceu de maneira impressionante desde seu início. Quais aprendizados ou segredos pode compartilhar sobre a criação e expansão de um projeto dessa magnitude em Mendoza?
A Casa Vigil surgiu como uma ideia e um sonho durante uma conversa bebendo chá mate com Ale, às 6h30 da manhã, em 2014. No início, era um espaço para provar os vinhos que elaborávamos, mas rapidamente, a pedido dos visitantes, incorporamos a gastronomia. Durante esses anos, a chave foi formar equipes, crescer em estrutura e profissionalismo. O trabalho focado nos recursos humanos e no produto. Isso nos permitiu crescer de maneira sustentável, profissionalizando cada área da empresa.
Começamos com uma estrutura muito básica, com 5 pessoas multifuncionais, e o crescimento nos fez criar estruturas dentro da empresa, que trabalham em conjunto para alcançar nossos objetivos. Um segredo importante é não perder a essência do que somos e transmitimos, fazendo com que cada colaborador conheça a origem de Casa Vigil e seus pilares fundamentais.
Os Tomates do Labrar
Desde que María começou a trabalhar com este cultivo em 2010, os integrantes do projeto já cultivaram mais de 100 variedades. Atualmente, após anos de estudos, não apenas pelo sabor, mas pelas propriedades benéficas à saúde e pela adaptação à nossa região, o grupo trabalha com cerca de 50 variedades.
Muitas das sementes utilizadas provêm de um resgate de variedades realizado em 2007, por um grupo liderado pela Dra. Iris Peralta, com quem continuam trabalhando na Universidade Nacional de Cuyo.
Atualmente, no Labrar, há 11 produtores que atuam como guardiões de sementes, e que também começaram a trabalhar com o Banco de Germoplasma do INTA La Consulta, em Mendoza.
* Andrea Albertano é colaboradora da Forbes Argentina. Escreve sobre o setor agroalimentar e enogourmet.
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