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O Filipe Toledo que entrou cabisbaixo no mar de Pipeline, no Havaí, no fim de janeiro deste ano, e na bateria de abertura do campeonato mundial da World Surf League (WSL) conseguiu somar apenas 1.77 ponto, superado facilmente por Samuel Pupo e por Shion Crawford. Em nada lembrava o Filipe Toledo que, três meses antes, escrevia seu nome na história do esporte ao se tornar o primeiro brasileiro bicampeão mundial (com títulos consecutivos), dando um show de surfe na final em Trestles (Califórnia), contra o australiano Ethan Ewing. O paulista de Ubatuba arrepiou na primeira bateria, disputadíssima, voando baixo para marcar 17.97 contra 17.23, e fechou a melhor de três, ganhando a segunda bateria por 14.27 a 12.37.
E onde está a diferença entre essas duas performances tão distintas e tão próximas? Nas condições do mar? Não. No tipo de onda das duas praias? Também não. A diferença está na cabeça do Filipinho, como é conhecido no tour. Ao perder a primeira bateria em Pipeline, ele teria a chance de se recuperar na repescagem – mas jogou a toalha. Depois de ficar sozinho em um quarto, o bicampeão tomou uma decisão que surpreendeu a elite do esporte: resolveu abandonar o campeonato mundial de 2024 e focar apenas na preparação para os Jogos Olímpicos de Paris, que começa a etapa do surf neste sábado (27) – e tudo isso em nome de sua saúde mental.
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“Em 2019, eu já havia passado por momentos até piores, e não queria viver aquilo de novo”, desabafou em entrevista para a Forbes. “Preciso me ouvir, preciso me entender, preciso me respeitar. Minha cabeça precisa de um tempo. Não consegui descansar nos últimos dois anos; óbvio que foram anos incríveis, me tornei o primeiro bicampeão mundial com títulos seguidos, mas foi uma época que sugou bastante da minha energia. Então, pensei bem e entendi que 2024 era um bom momento para parar, consigo estar com minha família, meus filhos. É isso que eu quero. Decidi.”
Fora da água, as novidades de Filipinho também são muitas. Ele, que é residente de Trestles, veio ao Brasil no fim de fevereiro para lançar o Instituto FT77, na Praia Grande, em Ubatuba, lugar onde aprendeu a surfar, antes mesmo de andar, com 10 meses de vida. O objetivo da iniciativa é dar oportunidades e inserir no esporte crianças e adolescentes carentes da região – usar o surfe como ferramenta de inclusão social. Serão dois projetos iniciais: um para 60 crianças de 12 a 16 anos; e outro mais focado em alto rendimento, para 16 atletas (8 meninas e 8 meninos).
Entre os novos negócios do atleta, que tem 13 patrocínios, está a sociedade na Let’s Poke, uma rede de culinária havaiana que pretende se espalhar no Brasil; a sociedade na Pasokin, uma empresa de paçoquinha produzida nos Estados Unidos; o lançamento da Ecoboard FT77, a primeira prancha 100% reciclável do mundo; e a parceria com a Beyond The Club, clube exclusivo com praia e piscina de ondas na cidade de São Paulo previsto para 2025. Na entrevista a seguir, ele fala a respeito de sua formação e desse ano tão precioso.
Forbes – É verdade a história que você começou a surfar com 10 meses de vida?
Filipe Toledo – Cara, acredite ou não, é verdade! (risos) Tenho várias lembranças, eu pequenininho na prancha. Meus pais falam que a primeira vez que dentei numa prancha e vim numa onda, obviamente com o meu pai dando toda a segurança. Foi isso mesmo, com 10 meses. Eu nem andava, me preocupava mais em estar na água. A gente ia para a Praia Grande de carro, pois ficava a uns três quilômetros de casa. Tivemos um Gol branquinho, um Gurgel, mas o que mais deu o que falar foi uma Quantum, era uma barcona cinza-chumbo, cabia a família toda, mais as pranchas. A gente passava pela cidade e o pessoal já sabia quem era.
Se não fosse surfista, você se imagina fazendo outra coisa?
Nunca pensei em fazer outra coisa. Não foi assim: “Vou começar o surfe aqui, mas, se der errado, vou ver outra coisa”. Para mim, nunca teve o plano B. Era sempre ser surfista. Fui surfista a vida toda, e sempre deu muito certo. Estudei até o terceiro ano do colegial.
Desde quando você mora nos Estados Unidos?
Moro aqui em Trestles desde junho de 2014. Viemos por causa das oportunidades profissionais para mim, todos os meus patrocinadores na época estavam na Califórnia. Vim com o intuito de aprender a língua também, e dar uma oportunidade para meus irmãos e minha família, porque, apesar de Ubatuba ser linda, maravilhosa, não tem muito mais o que fazer. Ou você tem um emprego incrível, ou é mais do mesmo. Eu ficaria ali, no mesmo. Mas a gente tem ambição, tem planos, sonhos, e é preciso correr atrás deles. Então, pela qualidade de vida, por oportunidades para todos da família, decidimos que aqui seria o melhor lugar.
Você é casado há quanto tempo? Sempre sonhou em ser pai?
Sou casado com a Ananda há 8 anos. Desde antes do casamento, já sonhava em ser pai. Mas nosso primeiro filho [Mahina, hoje com 7 anos] veio de surpresa, em um momento da minha vida em que eu estava chegando a um auge da minha carreira. Então, a gente ficou bem assustado, mas, desde o primeiro momento, quis cumprir o que tenho que cumprir como pai. Já o Koa [5 anos] foi planejado. Logo depois da Mahina, achamos melhor termos o segundo, pois ambos queriam, e assim eles poderiam crescer juntos e já passaríamos perrengue com os dois de uma vez.
Mahina, no Havaí, é “luz da Lua”. Koa tem algum significado?
Koa, além de ser uma matéria-prima importante que eles usavam no Havaí para fazer canoas, barcos, pranchas e lanças, significa “guerreiro”.
Você sempre ora antes de entrar na água. Como a religião entrou na sua vida?
Minha mãe [Mari] cresceu num lar evangélico. Então, meus avós sempre foram muito fiéis e bem rígidos com essa parte. Meu pai [Ricardo Toledo, tricampeão brasileiro de surfe, 1985, 1991 e 1995] foi diferente: ele vem de uma família católica, mas ia para a igreja só para cumprir tabela ao lado dos pais. Hoje, a conexão que a gente tem com a religião é o que nos move. O que conta é a nossa fé e a nossa determinação. Sou grato por ter crescido em uma família assim. A oração faz parte do dia a dia. Quando acorda; quando vai se alimentar; quando vai surfar… Sempre agradecendo pelos momentos, pedindo proteção, sabedoria, entendimento, saber qual onda vai ser boa. A gente conversa com Ele. Isso nos faz ser mais confiantes. Aqui pertinho a gente tem uma igreja cristã chamada Zaion – minha família vai praticamente todo domingo. Quando não estou, tento acompanhar pelo YouTube.
Qual é o principal objetivo dos projetos previstos no IFT77, o instituto que acaba de lançar?
A principal ideia é transformar vidas através do surfe – usar o esporte como uma ferramenta de inclusão social. Ponto. O surfe também funciona para abordar outros temas, como a proteção dos oceanos, a preservação das praias, a ameaça do microplásticos, reciclagem – é um todo. Em um dos programas, são 60 crianças com quem vamos trabalhar para dar uma estrutura, proporcionar a oportunidade de uma mudança de vida; vamos oferecer alimentação, acompanhamento escolar, psicológico e odontológico, sempre valorizando o contato com a natureza. No outro programa, teremos um trabalho mais voltado para a alta performance: serão só 16 atletas, visando mais ao lado competitivo, buscando uma evolução para o profissional.
Quando e por que você decidiu não participar do Campeonato Mundial de Surf (WSL) este ano?
Antes de acabar o ano passado, ali por dezembro, tive algumas conversas com a minha esposa sobre a necessidade de descansar, mas, foi aquela coisa que costumamos fazer: deixamos para lá… Afinal, vinha de dois títulos, teria bastante oportunidade, há o medo de parar e os patrocinadores não entenderem… Então, seguimos com os planos para a temporada. Mas, um dia antes de chegar em Pipeline [abertura do circuito mundial], começou aquela coisa de pressão, de ter que ir, tal, e o horário, e a prancha, decide isso, aquilo, e a rotina… Aí, eu, “caraca, acho que não é isso que quero este ano”. Logo na primeira bateria, não consegui surfar, já estava mal, vivendo uma crise de ansiedade dentro da água. Pensei, “cara, vou ter que fazer tudo isso de novo, mais um ano, meu Deus, estou aqui há 11 anos já, acho que preciso de um pouco de paz…”.
Foi a gota d’água para você desistir do tour em 2024?
Sim, foi isso. Depois da primeira bateria de Pipe, fiquei bem arrasado, entrei no meu quarto sozinho e fiquei digerindo a decisão de parar. Precisava agora contar para as pessoas. Falei com a minha esposa, meus pais, meus dois managers [um nos EUA, outro no Brasil], meus patrocinadores e todos me deram total apoio. Esperei uns três dias para poder oficializar, mandei um e-mail para a WSL e contei com o apoio deles. Aí, a gente programou o dia e postamos juntos.
Como foi sua rotina de treinos para os Jogos Olímpicos?
Voltei [início de março] de Puerto Rico, onde se decidiram as outras vagas olímpicas. Muito treino, muito surfe, obviamente sempre de olho em condições boas de onda no Taiti [na Polinésia Francesa, onde será realizado o surfe, na praia de Teahupoo], porque daqui é perto, só oito horas de voo. Pego um avião, vou lá, treino, com o foco em melhorar nessa onda para tentar trazer essa medalha para o Brasil.
Quantas vezes você competiu em Teahupoo e qual é o seu melhor resultado lá?
Desde 2012, eu vou lá todo ano. Meu melhor resultado no circuito foi uma semifinal.
O fato de ser um lugar onde você nunca venceu o instiga mais pela medalha?
Sim, o fato de não ter vencido, você fica, “pô, nunca cheguei, será que é agora?”. Mas eu direciono para outro lado: “cara, nunca ganhei, é uma oportunidade de eu ganhar e ainda levar uma medalha”. Isso traz combustível para se doar ainda mais e tentar um bom resultado.
Um duelo brasileiro por medalha com Gabriel Medina pode acontecer – e ele já venceu duas vezes nessa onda…
Com certeza. Ele é o cara a ser batido.
Sobre seus novos negócios e parcerias, quando fechou com o Beyond the Club?
Foi agora em janeiro, mas já estava tudo organizado no fim do ano passado. É difícil comparar piscina de onda com o mar, mas está em um caminho bom. Na Fazenda da Boa Vista [empreendimento da JHSF no interior de São Paulo], por exemplo, a onda é uma muito boa, traz sensação de mar, vários tipos de onda. Para o Beyond the Club, vou entrar com a minha imagem, minha experiência e participação em eventos ou datas de “Surf com Filipe Toledo”. Vou atuar também para expandir o negócio, levar outra piscina para o meio do Texas e explicar como a coisa funciona.
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É curioso que você decidiu parar no circuito mundial para descansar, mas tem bastante trabalho como empreendedor, envolvido com a Pasokin, querendo abrir franquias de Let’ Poke no Brasil, desenvolvendo a prancha reciclável Ecoboard FT77…
(risos) Exatamente! Mas, então, daí, é só coisa boa!
O que a prática esportiva de alta performance pode ensinar para o empreendedor no mundo dos negócios?
Visão. Acho isso algo muito importante: ter a visão do que você quer realmente, se planejar direito e se dedicar. Se você não se dedica 100%, vira perda de tempo. Disciplina é fundamental, seja na vida do esportista ou do empresário. E o que o surfe trouxe muito forte para mim é o respeito. Ter respeito é essencial em todas as áreas de nossa vida. Saber ouvir também é básico. E, óbvio, tentar, arriscar, errar – e se levantar de novo.
Entrevista publicada na edição 117 da revista, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.
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