“Somos uma empresa que está criando alimentos novos”, disse Tom Adams, CEO e cofundador da Pairwise, com sede em Durham, na Carolina do Norte (EUA), uma empresa que está aplicando a tecnologia CRISPR para aprimorar cultivos especializados e commodities. A Pairwise usou, em 2023, a edição gênica, ou CRISPR, para colocar no mercado o primeiro produto vindo da tecnologia. Trata-se de uma mostarda sem o característico gosto amargo que lembra o wasabi, fruto de uma reação quando ela é mastigada, o que pode torná-la uma verdura tão atrativa ao prato do consumidor quanto a couve ou a alface, a folhosa mais plantada no mundo. Usando o CRISPR, os pesquisadores deletaram 17 cópias do gene que faz a reação acontecer. Mas esta é apenas a ponta do iceberg da revolução que está apenas começando. Cientistas e pesquisadores apostam que a edição gênica é um caminho sem volta e que bastam ajustes, como definição de patentes, regulações e investimentos na massificação para que alimentos vindos da tecnologia se tornem corriqueiros.
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A edição gênica de alimentos foi um dos temas das 24 trilhas de conferência durante o SXSW (South by Southwest), em Austin, no Texas, festival sobre tecnologias, cinema, música, educação e cultura, que terminou no sábado (16), onde ocorreram cerca de 450 sessões, entre elas com temas que interessam ao agro.
As duas cientistas que desenvolveram o chamado CRISPR/Cas9, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, ganharam o Prêmio Nobel de Química de 2020. Para a saúde humana, o CRISPR teve um grande avanço no ano passado, com o primeiro medicamento baseado na tecnologia aprovado para uso nos EUA, Reino Unido e na Europa, destinado a uma doença terrível chamada doença falciforme, o que ocorreu antes do lançamento da mostarda da Pearwise. O fato é que o potencial do uso do CRISPR pode levar a mudanças radicais nos sistemas agrícolas.
Mas o que é exatamente a tecnologia CRISPR? “Ela é diferente do transgênico, ou OGM (Organismo Geneticamente Modificado), o que significa que o produto contém um gene estranho. Por exemplo, extrair genes de bactérias e introduzi-los no gene do milho para que elas ajudem a controlar o ataque desses insetos, o que ajuda substancialmente os produtores”, diz Adams, que é doutor em microbiologia e ciências vegetais. “No CRISPR, ou na edição genética por qualquer outra tecnologia, se usa os genes que existem naturalmente na planta. Não há nenhum DNA estranho na edição genética. Trata-se apenas de criar uma forma mais eficiente de produzir algo que poderia vir do processo de melhoramento natural ou de um processo de melhoramento genético, onde por meio de cruzamentos se modifica a sequência do DNA em uma determinada posição”.
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Não por acaso, na Europa chamam o evento de novas técnicas genômicas, nos EUA ela é chamada de nova tecnologia de melhoramento genético. Para Elena Del Pup, doutoranda em bioinformática na Universidade de Wageningen, na Holanda, com estudos centrados na descoberta de produtos derivados de plantas para o desenvolvimento de novos medicamentos, biomateriais e culturas biofortificadas, resilientes e sustentáveis, há vantagens de usar CRISPR em relação às técnicas tradicionais de melhoramento, porque a tecnologia é muito mais precisa em seu resultado.
“Agora, podemos planejar também a edição da característica na planta e alcançar o que queremos. Então, é muito mais previsível e permite basicamente fazer uma edição muito específica do genoma no local que precisamos que ele esteja. E porque também é um método muito orientado ao conhecimento. É necessário realmente ter muito conhecimento sobre o que você deseja editar para criar essa característica na planta”, diz ela. “Por isso que a tecnologia é tão importante para os objetivos de sustentabilidade, que não podemos dar tempo para que algumas características, na verdade, sejam alcançadas através do melhoramento convencional. Mas precisamos de algo muito mais rápido para cumprir as metas de sustentabilidade.”
A pesquisadora afirma que isso tornou a edição gênica estratégica para a Europa, dadas as ambiciosas metas de sustentabilidade que o continente tem no acordo verde, na estratégia do campo ao prato e na estratégia de biodiversidade. A cientista agrícola e vegetal, Vypula Schukla, que há 20 anos trabalha com edição genética e hoje é diretora de programas da fundação Bill e Melinda Gates, com sede em Seattle, Washington, diz que há benefícios quantitativos na tecnologia CRISPR porque ela é mais precisa, rápida, direcionada e eficiente.
“Mas também existem benefícios qualitativos do CRISPR em comparação com os transgênicos, pela capacidade de seu emprego com base no conhecimento de outras espécies de plantas que crescem em condições ambientalmente desafiadoras ou em ambientes extremos. Se aprendermos sobre a genética daquela espécie de planta em particular, teremos uma oportunidade de pensar se existe uma maneira de usar o CRISPR para recriá-la.” Explicando: não se poderia cruzar milho com um cacto, mas se poderia encontrar no milho algo que se pareça com o excelente gene que determina o uso de água de um cacto, e editá-lo para torná-lo mais apropriado ao milho.
Outro exemplo de uma das doenças mais devastadoras no cultivo do arroz é a praga bacteriana, que pode levar a perdas de colheita de até 75% a 100% quando há surtos desta praga. “Temos um projeto trabalhando com um consórcio de pesquisa de cientistas de universidades que identificaram bons alvos para edição CRISPR que evitam que as bactérias que causam esta doença se tornem patogênicas, se tornem virulentas”, diz ela.
As pesquisas envolveram edições em variedades de arroz cultivadas por agricultores na Índia e em África. Elas foram testadas em campo e em laboratório e conferem resistência a até 100 cepas diferentes dessa bactéria. “As plantas são essencialmente resistentes à praga bacteriana, e estamos avançando, utilizando métodos de melhoramento tradicionais, para mobilizar essas características em muitas outras variedades que são adaptadas a diferentes agroecologias em diferentes países”, afirma Vypula. “A tecnologia introduziu uma característica de resistência a doenças altamente valiosa em uma cultura que é consumida por mais da metade da população do planeta.”
Por que a edição gênica pode ganhar mercado?
Adams diz que o foco de sua empresa está no fato de que a tecnologia somente importa se as pessoas estão dispostas a usá-la para comer alimentos que são produzidos com ela. “Até agora, gastamos a maior parte do nosso esforço com OGMs, de alimentos que as pessoas na verdade não comem diretamente, como o milho usado para alimentar, porcos, vacas, galinhas e carros (se referindo ao etanol). As pessoas podem ouvir coisas assustadoras sobre OGM, mas elas não estão realmente interagindo de maneira direta”, diz ele. “Não é o caso do CRISPR. Por exemplo, agora temos alguns outros projetos, como o de cerejas sem caroço. Quando pensamos na mostarda estávamos procurando oportunidades saudáveis. Com a tecnologia, a mostarda não tem gosto de outra coisa, ela tem o seu próprio sabor e com isso o consumidor se identifica.”
Na Fundação Gates, diz Vypula, a abordagem tem sido semelhante: tratar do desejo do consumidor. “Pensamos além dos países ricos. Porque há muita demanda e necessidade de características atraentes que sejam voltadas tanto para os agricultores quanto para os consumidores no mundo em desenvolvimento”, afirma. Uma delas se refere às alterações climáticas que afetam a todos, mas de modo desproporcional porque as pessoas no mundo em desenvolvimento que têm menos recursos para se adaptarem ou mitigarem as consequências das alterações climáticas.
“Estamos analisando a edição gênica para imputar às culturas características que são muito específicas para elas, o que chamamos de agroecologias, como aquelas que conferem resistência a pragas e doenças”, afirma Vypula “Uma das consequências das alterações climáticas é que as pragas estão se deslocando para locais onde nunca estiveram antes, porque é mais quente, ou é mais húmido, ou é mais seco. E as culturas não estão adaptadas a essas pragas porque nunca as enfrentaram antes”, diz ela. Com a edição gênica é possível conferir características que tornam as culturas mais tolerantes a pragas e doenças que nunca experimentaram antes. “Alguns lugares estão mudando completamente a dinâmica da sua agroecologia. E as culturas precisam de ser capazes de se adaptar a isso”, diz Vypula.
Elena Del Pup diz que edição gênica e fator climático estão na ordem do dia também na Europa e tem isso tem relevância comercial. Foi construído na Europa o chamado UE-SAGE, que na tradução livre significa “agricultura sustentável europeia por meio da edição do genoma”. O banco de dados está disponível on-line com todos os estudos de edição de genoma, classificados por tipo de tecnologia de edição, tipo de comércio e tipo de pool ao qual se destina. “Por exemplo, e que é realmente interessante, é o fato de a maioria dos estudos sobre edição de genomas visarem os estresses bióticos e abióticos, ou seja, provocados por pragas e doenças. Mas as mudanças climáticas e outros estresses que não estão relacionados aos seres vivos, mas sim ao ambiente em que a planta cresce, são importantes para o produtor no que diz respeito ao rendimento das colheitas, o que significa segurança alimentar num sentido mais amplo”, afirma Elena.
Ela também lembra que a edição gênica pode trazer qualidade nutricional com alimentos biofortificados ou mesmo melhorados nas suas características nutricionais. “Existem algumas culturas que, por natureza, desenvolvem toxinas que têm de atingir um determinado nível para serem comestíveis. E é um importante alvo da edição poder reduzir essas toxinas, como por exemplo os glicoalcalóides do tomate.”
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Mas há uma série de compostos antinutricionais em diversas culturas que são realmente importantes para o mercado. Uma delas é a quinoa, por exemplo, que ainda é uma cultura menor e vem ganhando cada vez mais espaço no mercado. “Além disso, existem alguns alvos de leitura que não podem ser alcançados sem a edição do genoma”, afirma Elena. “Existem cadeias de abastecimento inteiras relacionadas à identidade de um genoma individual. E se esta cadeia for ameaçada por pragas, não podemos simplesmente iniciar um programa de melhoramento, porque perdemos completamente a identidade da cultura original”, afirma. “ Portanto, precisamos de edição para podermos corrigir essa falha e fazer ajustes no genoma e talvez preservar toda a cadeia de abastecimento.”
As regulações da edição gênica no mundo
Adams explica que as regulações para a tecnologia da edição gênica nos EUA tem sido mais simples do que foi para os produtos transgênicos. “Nos Estados Unidos, a agência reguladora que é predominantemente responsável pela edição genética é o USDA (Departamento de Agricultura dos EUA)”, diz. Com o USDA há um processo onde basicamente há uma confirmação de que não se trata de um evento transgênico que está sendo produzido, que se trata de uma edição genética, ou seja, o que se faz poderia ter sido feito por meio de técnicas de reprodução. Sem entrar em detalhes de tempo e valor, Adams diz que a avaliação é relativamente rápida porque não são necessários muitos dados, como era no passado, e que o processo não é caro e nem oneroso.
Mas há contestações no mercado dos EUA em relação ao atestado do USDA, por ainda não existir regulamentação e sim uma supervisão regulatória para garantir que regras estão sendo seguidas. Esse vácuo poderia ser resolvido pela EPA (Agência de Proteção Ambiental dos EUA). Mas ainda resta a lacuna alimentar, e aí estaria a cargo do FDA (Federal Drug Administration).
No caso do lançamento da mostarda da Pairwise, o processo levou cerca de quatro anos, entre a ideia até o lançamento comercial. “Foi relativamente rápido, porque desde o início estávamos levantando a aprovação com o USDA e isso nos permitiu cultivar a mostarda em ambiente de campo de forma ainda controlada, mas não apenas em estufas, uma vez que a mostarda é cultivada principalmente a céu aberto”.
Na Europa o processo é diferente. Há três semanas, no final de fevereiro, o assunto foi pauta nas votações do Parlamento Europeu sobre uma nova proposta legislativa relativa às novas técnicas genômicas. Ou seja, culturas adicionadas ao genoma, bem como gênese cis e mutagênese direcionada. “Esse é um sinal muito positivo. Eles ainda estão trabalhando muito nas alterações e há detalhes que ainda podem entrar ou sair, dependendo da votação do conselho”, afirma Elena “Porque há múltiplas instituições na Europa que precisam concordar com os processos. Portanto, haverá um período de dois anos, pelo que esperamos até 2025 saber realmente se a proposta será adotada.”
A jornada começou, na verdade, em 2018, quando o Tribunal de Justiça Europeu decidiu que as novas técnicas genômicas, ou seja, culturas com genoma editado, se enquadram na definição de OGM, que na Europa é extremamente extensa. No continente, qualquer alteração de material genético que não ocorra de uma maneira semelhante à da natureza, cai automaticamente na definição de OGM.
“Isso significa que cada nova biotecnologia que surge também é automaticamente uma tecnologia OGM. O que a Comissão Europeia trabalhou na proposta foi uma nova definição”, diz ela. Foram criadas duas categorias de novas técnicas genômicas que serão isentas de alguns dos requisitos de avaliação de risco do regulamento sobre OGM. “Estou sendo muito específica, mas de qualquer forma, existem certos limites que ainda estão sendo discutidos e que até certo ponto serão isentos da avaliação de risco. E é por isso que neste momento a Comissão Europeia está trabalhando no sentido de permitir um forte impulso destas culturas”, afirma Elena.
No caso da África Subsaariana, no Sudeste Asiático, os países estão trabalhando de olho no que a Europa decide, justamente por serem países exportadores. “É importante não só que os europeus cheguem a um quadro regulamentar e de registo que funcione numa perspetiva global, mas também que todas as outras entidades que são influenciadas por eles se pronuncien”, afirma Vypula. “O que fazemos na Fundação Gates é trabalhar diretamente com muitos governos perguntando a eles se esta é uma tecnologia que interessa para os seus eleitores e os seus agricultores”.
Vypula conta que os agricultores querem colheitas melhoradas e, na sua maioria, não se importam com a forma como essas colheitas são melhoradas. “Por isso é preciso apoiar os governos para ajudá-los a ter conhecimentos técnicos internos e nacionais que possam ajudar a desenvolver quadros regulamentares que satisfaçam as suas necessidades, país por país.” O Brasil criou em 2005, a chamada Lei da Biossegurança que regula o uso de edição de genes, mas é incipiente. Desde 2018, o tema passou para o âmbito da CNTBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), e é o organismo que tem tratado do assunto, ainda em aberto.
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