São 11h da manhã na estação de Xangai. Em 10 minutos, parte um trem-bala para Changzhou, a 190 quilômetros de distância, trajeto feito em 50 minutos. A jovem Yuan Yue, de 23 anos, utiliza seu AliPay, aplicativo que agrega uma série de serviços e é um dos mais populares da China, para apresentar o QR Code dos bilhetes e passar a catraca. Diariamente, ela faz esse trajeto. Em um espanhol fluente, Yuan ajuda a reportagem da Forbes Brasil a localizar o vagão.
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Nascida no norte do país, próximo à fronteira com a Rússia, Yuan se formou em comunicação na Universidade Jiao Tong, de Xangai, e aprendeu espanhol sem nunca ter saído da China. Ela trabalha em uma empresa de desenvolvimento de bots e atua como “treinadora” de sistemas de inteligência artificial. O perfil dessa jovem chinesa é comum a uma nova geração de profissionais do país. Mais tecnológicos, conectados e inseridos em uma cultura global – o espanhol fluente indica isso –, eles compõem um grupo valioso de trabalhadores da nova economia chinesa. Muitos deles, desiludidos pelo desemprego em áreas urbanas, estão retornando à casa dos pais fora dos grandes centros. Mas outra parte tem sido fundamental para atender à demanda de novos perfis de trabalho.
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Se o gigante asiático se tornou uma potência global com seu potencial de manufatura, hoje, a concorrência também se dá em outro campo, colocando a China como um grande player em inteligência artificial e computação quântica. A capacidade de testar e escalar essas duas tecnologias, além do novo perfil dos jovens trabalhadores, faz com que a nação asiática defina um novo destino estratégico, sobretudo, em um momento delicado para a economia daquele país. Analistas indicam que, em 2023, a meta de crescer por volta de 5% está cada vez mais distante para os chineses. Desde 1994, a economia cresceu, em média, por ano, 8,7%, sendo o pico em 2007 (14,2%) e o menor nível em 2020 (2,2%), em função da pandemia de Covid-19. A reportagem da Forbes Brasil percorreu três cidades estratégicas para esse contexto: Hong Kong, que, mesmo sendo um território autônomo, é destino das ações de grande parte das big techs chinesas; Shenzhen, ao sul, conhecida como o Vale do Silício chinês, reunindo as maiores empresas de tecnologia da Ásia; e Xangai, a cereja do bolo dessa tríplice potência tecnológica chinesa com seu tamanho e relevância.
Vale do Silício da China
Das três cidades, Shenzhen é, neste momento, a menina dos olhos da Ásia. O antigo vilarejo de pescadores viveu várias fases até chegar ao que se tornou atualmente. A cidade já foi, em meio século, primordial no boom dos eletrodomésticos chineses, palco para o desenvolvimento da indústria de eletroeletrônicos, depois potência em hardware e IoT e, hoje, concentra praticamente tudo o que há de mais inovador em tecnologia. Por lá, estão instaladas empresas como Tencent, Huawei, ZTE, BYD, Meitu, Alibaba, ByteDance e centenas de outras. Com 12,5 milhões de habitantes, Shenzhen tem 70% de sua frota de automóveis eletrificada. Reflexo direto na qualidade do ar e no silêncio das ruas. “O nível com que a China consegue se adaptar e crescer segue imbatível. Shenzhen é um exemplo disso. Em menos de 50 anos, foi de uma vila para uma potência em tecnologia e desponta, hoje, como um hub de inovação não só da Ásia, mas de todo o planeta”, analisa Reinaldo Ma, sócio da IEST Consulting, do BMJ Relações Governamentais, BPP Advogados e membro do Conselho Empresarial Brasil-China.
Live-commerce: um mercado de US$ 160 bi
Live-commerce é, atualmente, uma das principais alavancas de consumo entre os chineses. Globalmente, o live-commerce movimenta US$ 160 bilhões, sendo o país asiático responsável por mais de 60% desse volume. In Hsieh, cofundador da Chinnovation, explica que, em especial no caso do e-commerce, os modelos nasceram diferentes. “O live-commerce se aproxima de uma experiência mais humana de compras, mais natural, social, divertida e instrutiva. Além de usar técnicas que potencializam as vendas. E, na China, tem ainda o fato de as lives serem em plataformas (e-commerce ou conteúdo) que usam muita recomendação por algoritmo. E-commerce tradicional é solitário e até chato. A pessoa tem que estar com muita vontade para comprar, por isso as taxas de conversão (audiência em comprar) são tão baixas”, diz In Hsieh. “O live-shopping pode ser maior que o e-commerce no Brasil”, disse recentemente à Forbes Brasil Etienne Du Jardin, CPO e cofundadora da Mimo Live Sales, startup especializada no conceito que mescla transmissão ao vivo com comércio eletrônico.
A frase pode parecer pretensiosa. Isso porque, no Brasil, o e-commerce movimentou R$ 450 bilhões, de 2019 a 2022, e com perspectivas de crescimento de mais de 25% nos próximos anos, segundo o Ministério da Indústria. Mas a empreendedora defende que o potencial de conversão da ferramenta da Mimo é quatro vezes maior que uma venda transacional. “O live-shopping humaniza a venda, algo importante para os brasileiros, que gostam de atenção em suas relações de consumo”, afirma.
I.A na prática e em escala
Em relação à inteligência artificial, tecnologia que vai definir o futuro da Terra nas próximas décadas, a China coleciona superlativos. Até 2027, as empresas chinesas vão investir, juntas, mais de US$ 38 bilhões ao ano em IA. “Podemos dividir os destaques em inovação da China, a ponto de influenciar externamente, em dois aspectos. O primeiro é o conceito de SuperApp e, o segundo, a ideia de ecossistemas, ambos estruturados em torno de mobile, pagamentos, comércio eletrônico e, principalmente, IA”, explica In Hsieh, cofundador da Chinnovation. Quando o assunto é tecnologia, em que os chineses se destacam, In lista as mais promissoras junto com IA: energia renovável, veículos elétricos, robótica, 6G, computação quântica, moeda digital e biotecnologia.
Em comparação com os Estados Unidos, principal competidor global em vários aspectos, o que conta a favor da China é a escala. “Os EUA e muitas outras nações começaram antes, mas não chegaram a aplicar e escalar a IA para o consumo como a China tem feito. Por isso, costumo enfatizar também a capacidade de implementação e execução dos chineses”, completa In. Em seu livro Os Nove Titãs da IA, no qual detalha a competição entre EUA e China no desenvolvimento de IA, a autora e futurista Amy Webb dá três argumentos que fazem dos chineses competidores muito mais avançados neste momento. “A China investe bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento de IA anualmente, inclusive, com apoio do governo, o que faz com que os cientistas chineses criem tecnologias de ponta relacionadas a IA de forma mais rápida. Outro elemento é o acesso que a nação e o governo têm a grandes volumes de dados: isso se dá nas ruas, nas estações de transporte público e em qualquer lugar onde as pessoas transitam. Por fim, pela sua densidade populacional, a China consegue aplicar tudo isso e testar. Essa combinação coloca o país muito à frente, principalmente no caso de IA, que demanda muito treinamento”, escreve Amy Webb.
Guerra dos chips e eletrificação
A China tornou-se a maior consumidora e produtora de carros elétricos no mundo e quer estender esse feito para fora das fronteiras. A chegada de várias marcas chinesas ao Brasil ilustra esse movimento (leia mais na página 78). A chinesa BYD, por exemplo, com sede em Shenzhen, é maior que a Tesla em volume, e seu fundador, Wang Chuanfu, é apelidado de “Elon Musk” chinês (leia mais no boxe com a Stella Li). De acordo com Reinaldo Ma, em relação a esse tema, a China fez uma escolha de liderança e vem investindo nela com agressividade. “Isso fez o país ganhar notoriedade, exportar marcas chinesas e contribuir com escala e conhecimento para a eletrificação. Já os americanos buscaram o caminho do hidrogênio, enquanto os chineses aprimoraram suas baterias de lítio.” E, falando em lítio, a China sustenta um papel importante atualmente em outra disputa: a chamada guerra dos chips, ou semicondutores. Desta vez, no entanto, como grande consumidora.
O assunto, inclusive, virou tema de livro: Guerra dos Chips, de Chris Miller. Segundo o autor, a disputa entre os dois países pode tornar-se um tema militar até 2027. De acordo com Chris, a China é, hoje, quem mais demanda semicondutores no mundo, em diversas indústrias, mas possui desafios em relação à fabricação, que se concentra em Estados Unidos, Holanda, Japão e Taiwan. Recentemente, até a cidade de Taiwan, sede da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSCM), maior produtora de semicondutores do mundo, tornou-se alvo de especulações geopolíticas devido à sua importância para a fabricação dos dispositivos. Stella Li, vice-presidente global da BYD, reforçou, inclusive, à Forbes Brasil, a importância da América do Sul para a exploração de lítio.
Patentes: uma obsessão chinesa
Associar a China à competitividade tornou-se um lugar-comum, principalmente quando o tema é manufatura. No entanto, existem outros elementos além dos salários baixos e da quantidade de mão de obra disponível que determinam o motivo, hoje, de o país liderar uma série de iniciativas tecnológicas globais. Um deles está ligado direta e indiretamente a aspectos culturais: os chineses valorizam o reconhecimento e chegam a ser obcecados em relação a medi-lo. Isso explica um elemento fundamental na corrida pela liderança em inovação no mundo: quantidade de patentes. “Além de garantir os direitos sobre a criação, a patente é uma forma tangível de mensurar a evolução da empresa. E os chineses são obcecados em relação a isso. Existe outro aspecto: o reconhecimento oficial tem um peso enorme na China. É um país que valoriza em outra proporção prêmios e títulos”, diz In Hsieh, cofundador da Chinnovation. Das empresas com maior número de patentes no mundo em 2022, a Huawei aparece com destaque em quarto lugar, chegando a 2,8 mil registros somente naquele ano. O ranking é liderado pela sul-coreana Samsung, com 6,2 mil, IBM, 4,3 mil, e Semicondutores de Taiwan, com 3 mil. Rival direta da Samsung, a Apple conquistou 2,2 mil patentes, queda de 10% em relação a 2021.
Mercado doméstico VS. Novos mercados
Em relação à chamada nova onda chinesa no Brasil, marcada pelo movimento e investimento de uma série de empresas, entre elas Shopee, Shein, BYD, GWM e Huawei, Reinaldo chama a atenção para a diferença crucial entre manufatura, um perfil importante da economia chinesa, e as empresas de tecnologia. “Concordo que exista sim uma nova onda chinesa no Brasil. Porém, muitas vezes, ela não é mapeada ou considerada em termos de volume. Diferentemente de outras áreas, como petróleo e gás ou infraestrutura, que foi foco dos chineses por muitos anos, os volumes de investimento em empresas de tecnologia são menores e acabam por chamar menos atenção.” “É diferente investir US$ 3 bi no pré-sal versus destinar milhões a uma empresa de semicondutores, mas não menos importante. E esse movimento representa sim uma nova fase da economia chinesa. Existe uma tese, da qual eu discordo, de que os chineses estariam reduzindo seus investimentos internacionais por culpa da desaceleração econômica doméstica. Primeiro que estamos falando de uma redução, e não de um enfraquecimento econômico, e eu percebo que eles olham, sim, cada vez mais para fora. Nesse caso, considerando que investimentos na África, EUA e Europa já estão maduros, a América Latina tornou-se uma opção muito relevante, com destaque para o Brasil”, pontua Reinaldo.
Entrevista publicada na edição 112 da revista, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.
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