Tecnologia? Segurança alimentar? Poderio militar? Nada disso. O que vai pautar as conversas, a geopolítica, a economia e definir os ganhadores e perdedores (pessoas, empresas ou nações) ao longo deste século para além do curto prazo é a energia. Esse é o insumo mais relevante na economia mundial. Apenas um número mostra sua importância: segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), o consumo total de eletricidade em 1974 foi de 5,2 TW (terawatts, ou milhões de gigawatts). Quase cinco décadas depois, em 2019, dado mais recente disponível, esse resultado havia mais que quadruplicado, para 22,8 TW, um crescimento de 334%. Para comparar, de acordo com dados do Banco Mundial, o Produto Interno Bruto (PIB) global avançou cerca de 298% nesse período.
A diferença entre as duas curvas de crescimento não parece muito grande. Porém, ela está aumentando. A demanda por energia tende a avançar mais depressa que a economia. É fácil entender o motivo. Pense em quantos eletrodomésticos havia em sua casa 20 anos atrás e em quantos existem hoje. Ou na quantidade de pequenos comércios oferecendo bebidas e alimentos gelados atualmente comparada com os que proporcionavam essa conveniência há 10 anos. Ou ainda no número de veículos elétricos em circulação – e em quantas pessoas você conhece que dizem desejar que seu próximo carro seja elétrico, ou pelo menos híbrido. Tudo isso consome energia, e esse crescimento do consumo tende a ser definitivo. Não há muitas pessoas dispostas a retroceder no conforto e a trocar um aparelho de ar-condicionado por um ventilador (ou leque).
Assim como a demanda dos consumidores finais cresceu, os empresários estão demandando energia com uma voracidade inédita. Mais e mais países, em especial no Sudeste Asiático, estão implantando aceleradamente projetos de industrialização. Há uma corrida global por investimentos em infraestrutura, que elevam estruturalmente o consumo de eletricidade, e não há sinais de que essa tendência se interrompa no curto prazo.
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Isso leva ao problema seguinte: como atender à demanda global de energia sem torrar (ou afogar) o planeta devido ao aquecimento global? “O setor de energia é o grande responsável pelas emissões de CO2 no mundo. Praticamente 80% da matriz energética global é alimentada com combustíveis fósseis, especialmente o carvão”, diz o consultor Luiz Augusto Barroso, diretor-geral da consultoria PSR. Isso aumenta a pegada de carbono: segundo um estudo da consultoria McKinsey publicado no fim de maio, o setor energético responde por 30% do CO2 lançado na atmosfera. Para Barroso, o grande desafio ao longo das próximas décadas será “limpar” a matriz energética. Ou seja, trocar a eletricidade gerada por meio da queima de carvão e petróleo por energia de fontes renováveis.
O carvão, que movimentou a Revolução Industrial no século 19, é o maior problema. Ele ainda representa cerca de 27% da energia bruta usada para abastecer tudo, desde carros até redes elétricas. Ao contrário do gás natural e do petróleo, o carvão é carbono concentrado e, portanto, gera 39% das emissões anuais de CO2 oriundas de combustíveis fósseis. Não vai ser fácil alterar essa situação. Na década passada, enquanto a Europa reduziu o uso de carvão, o consumo na Ásia cresceu 25%. O continente agora responde por 77% da queima global de carvão, sendo que dois terços disso pela China. O carvão domina algumas economias de médio porte e rápido crescimento, incluindo a Indonésia e o Vietnã – e novas usinas estão sendo construídas. Não é irresponsabilidade ambiental, é necessidade. A energia gerada por carvão ainda é, no curto prazo, mais competitiva e rápida de obter. Uma usina a carvão é uma caldeira grande que pode ficar pronta em alguns meses, enquanto uma usina hidrelétrica é uma obra gigantesca de engenharia civil cuja conclusão pode levar uma década.
US$ 1 trilhão por ano até 2050
Por isso, falar na descarbonização da matriz energética é muito mais fácil e barato do que fazer. “O mundo tem na cabeça a necessidade de substituir os combustíveis fósseis e de eletrificar a economia. Vários países trabalham nisso e já colocaram muito dinheiro na mesa”, diz Barroso. Ainda de acordo com a McKinsey, tornar o setor energético americano neutro em carbono, o chamado “net zero” – situação em que todo o carbono gerado para gerar eletricidade é absorvido ou compensado pelo próprio setor energético – vai custar US$ 1 trilhão por ano até 2050. E isso apenas nos Estados Unidos. “Será a maior alocação de capital da história”, segundo a consultoria.
Um negócio tão vultuoso terá de envolver a iniciativa privada, o poder público e o terceiro setor, gerando a maior oportunidade de investimentos deste século. Será preciso demolir e reconstruir boa parte da infraestrutura, além de corrigir os estragos de dois séculos. Nesse cenário, há algumas apostas, como energia eólica e solar (as mais promissoras), a geração hidrelétrica, que tem deixado de ser uma unanimidade, e a controversa energia nuclear.
Enquanto ventos, Sol e radiação não substituem os meios mais poluentes, algumas iniciativas já ganharam corpo. O processo de descarbonização e de migração para uma matriz mais limpa estava em curso nos países mais desenvolvidos dos dois lados do Atlântico. Nos Estados Unidos, por meio da extração do gás do xisto (shale gas), obtido a partir do fracionamento dessas rochas sedimentares, que têm grandes quantidades de gás. E na Europa, com a progressiva conversão de usinas movidas a petróleo e a carvão por gás natural e, no caso específico da Alemanha, pela desativação de reatores nucleares. O processo, que começou sem pressa em 2002, foi acelerado em 2011, após o acidente da usina nuclear de Fukushima, no Japão.
Porém, a invasão da Ucrânia por tropas russas em fevereiro de 2022 comprometeu o fornecimento de gás à Europa e desacelerou esse processo de descarbonização. Além de levar as contas de energia aos máximos históricos, o corte das entregas de gás russo e ucraniano fez renascer a discussão sobre a opção nuclear. Isso apenas sublinha o fato de que a oferta e a demanda de energia têm variáveis e vetores que vão além das meras decisões econômicas.
O cenário brasileiro
A situação do Brasil é muito específica. Por aqui, diz Barroso, da PSR, o perfil de emissões é bem diferente do global. Os grandes vilões da pegada de carbono no país são o desmatamento e a agricultura. O setor energético responde por 20% das emissões, e a energia gerada nas hidrelétricas responde por apenas 2%. “Temos recursos melhores do que os de outros países em termos de vento e de incidência solar, o que faz com que nossas usinas sejam mais eficientes do que a média internacional”, diz ele.
No Brasil, as fontes de energia mais baratas são a eólica e a solar. Um megawatt (MWh) de eletricidade gerada pelo vento custa R$ 220. No caso da geração solar, o custo oscila entre R$ 240 e R$ 250. A vantagem para as demais fontes é que, apesar de os investimentos não serem baratos, os insumos – vento e sol – são gratuitos. “Isso é uma vantagem em relação ao petróleo e ao gás”, diz ele. A parte negativa, porém, é que vento e sol são imprevisíveis, ao passo que a energia gerada pela queima de gás é confiável. “A grande importância do gás no Brasil é para as indústrias, preocupadas em diminuir a participação de fósseis mais sujos, como o óleo diesel e o combustível”, diz o especialista.
Caso raro no mundo, o Brasil é um país onde há eletricidade de sobra. “O consumo de energia elétrica tem sido inferior ao esperado, e há um excesso de oferta”, diz Bárbara Rubim, vice-presidente da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica. “Viabilizar qualquer projeto de geração envolve, além das dificuldades habituais, o desafio de levar o produto para onde está a demanda”, afirma. “Por isso, as empresas estão correndo atrás de novas demandas, como exportar para países latino-americanos.” E também há o problema da distribuição. “A energia eólica e a solar têm muito espaço para crescer, mas o maior desafio para ambas é a transmissão, o acesso ao sistema”, diz Rubim. “Essas fontes cresceram tão rapidamente que superaram a expansão da rede, por isso há muitos locais em que há produção, mas ela não consegue ser escoada.”
Por isso, a discussão sobre a transição energética é um pouco diferente por aqui. “O Brasil ficou hibernando na discussão de transição energética, mas assumiu uma posição no ano passado”, diz Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica. “É importante fazer políticas estruturadas. A gente precisa de marcos regulatórios e de governança, para todo o processo de descarbonização e para uma política industrial verde.” E o mercado tem muito espaço para se desenvolver. Porém, como estamos no Brasil, a evolução tem de enfrentar, além dos desafios tecnológicos, os entraves regulatórios e a imprevisível vontade dos burocratas. Por enquanto, o consumidor ambientalmente consciente que investe na instalação de uma placa solar em sua casa, condomínio ou empresa ainda tem dificuldades para monetizar o excedente de energia. Porém, se Brasília ajudar, a mudança virá logo. “Em 10 anos, o mercado terá condições de ser totalmente livre”, diz o advogado Raphael Gomes, sócio da área de energia do escritório de advocacia Lefosse. Segundo Gomes, essa liberdade virá do Projeto de Lei (PL) 414, apresentado em 2021 e esperando a criação de uma comissão na Câmara dos Deputados.
Simplificadamente, após sua entrada em vigor, os consumidores residenciais poderão fazer como as indústrias e comprar energia do fornecedor que quiserem. Com isso, diz Gomes, “é possível que, em 10 anos, haja 160 milhões de unidades consumidoras no mercado livre. Pense nessa multidão de consumidores conscientes e acostumados com a competição que existe, por exemplo, entre as operadoras de telefonia celular.” Segundo o advogado, se 60% dos consumidores atuais migrarem para esse mercado desregulamentado, vai surgir uma profusão de preços e tecnologias que tornem o setor mais sustentável, rentável e eficiente, algo que costuma ser reunido no conceito amplo de “geração distribuída”, ou GD. “Quando se olha para o mundo, o que se vê de tendência é a geração cada vez mais descentralizada e distribuída”, diz Bárbara Rubim.
No início da próxima década, o consumidor residencial ou a pequena empresa que atualmente dependem de uma distribuidora vão poder se integrar diretamente à rede. Além disso, conforme Rubim, o preço dos veículos elétricos deve se equilibrar com os movidos a combustão interna já em 2025. “Gerar a própria energia vai passar a ser necessidade maior, e o consumidor vai se tornar cada vez mais ativo no setor elétrico.” Isso será uma revolução para um setor em que as empresas estão acostumadas a ter clientes passivos. O setor elétrico terá de, cada vez mais, oferecer mais possibilidades para os consumidores, sob pena de ter de concorrer com eles. No futuro, o principal vetor de competitividade do mundo não será a tecnologia ou a inteligência artificial, mas o acesso fácil a energia limpa, barata e customizada, de acordo com as necessidades do consumidor.
*Reportagem publicada na Revista Forbes (que pode ser acessada no aplicativo ou no impresso) que integra o Especial ESG na edição 108.
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