Quando a profusão de luzes brancas, verdes e multicores da aurora boreal parece pincelar o céu na região do Círculo Polar Ártico, durante o inverno, é comum ouvir urros, suspiros e cliques de câmeras fotográficas. Os sortudos que presenciam o grande fenômeno celeste da Terra celebram como em um ano-novo fora de época, com abraços, risos e lágrimas.
Essa experiência rara e restrita a pouquíssimos territórios do planeta ganha ares de catarse quando premia os participantes das verdadeiras caçadas à aurora na remota Tromsø, na Noruega, capital mundial das “luzes do Norte”. Desde que foi descoberta pelo turismo há uns oito anos, Tromsø virou ponto de partida de pequenas expedições que avançam madrugada e interior adentro em busca das explosões de cores no firmamento.
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Para flagrar o fenômeno visual da queima de partículas dos ventos solares se chocando com o campo magnético da Terra, as condições ideais são céu escuro e sem nuvens. “Nossas saídas diárias para caçar a aurora são lideradas por experts locais que estudam a fundo as condições meteorológicas, maximizando as chances de acertar os pontos de observação a cada caçada”, explica Pedro Coelho, da Borealis Expedições, operadora brasileira especializada em caça e fotografia de auroras.
Com o pretexto de ver a aurora, quem cruza o Atlântico para voar a Oslo e de lá para Tromsø (lê-se “Trumsa”) acaba preferindo viajar justamente no inverno norueguês (e verão no Brasil), quando há mais horas de escuridão. O combo de dias sem luz com temperaturas negativas dá a esta jornada ares de exploração. Em 21 de dezembro, por exemplo, não há um minuto sequer de sol em Tromsø. Bastam algumas noites de caçadas e aventuras na neve durante as poucas horas de sol do dia para o relógio biológico se acostumar. A escuridão e o frio podem dar margem à preguiça, mas o charmoso núcleo urbano de Tromsø tem remédio contra isso: programas culturais e gastronômicos convidam os forasteiros a aprender a viver no inverno nórdico como autênticos noruegueses.
Bondinho até o topo da cidade
Com uma geografia perfeita para se ver ao vivo, de setembro a meados de abril, o maior espetáculo dos céus, Tromsø é mais bem entendida do alto dos 421 metros da montanha de Storsteinen. Sobe-se ali de bondinho para observar a ilha onde vive a maioria dos 72 mil habitantes de Tromsø, assim como o tapete branco de neve cobrindo as casas de madeira centenárias, iluminadas e coloridas do centrinho e alguns dos picos do entorno.
A proximidade das montanhas na divisa com a Finlândia aumenta a diversidade de cenários na hora de caçar auroras e contribui para o microclima local. Por receber correntes marítimas do Golfo do México nas águas que a rodeiam, Tromsø registra média de 4 graus Celsius negativos no inverno, temperatura mais amena que outros pontos da mesma latitude a 69 graus norte.
Ainda assim, o frio pode despencar a -25° Celsius, o que requer estratégia na hora de se vestir. Nas caçadas mais frias, a 13 graus negativos, vesti três calças, seis blusas, três pares de meia, dois pares de luvas, gorro e até balaclava!
Snowmobile no lago congelado
Vendaval, temperatura de 7 graus negativos e neve caindo não são motivos para desânimo quando o programa é acelerar uma snowmobile na superfície gelada da Lapônia. Pelo contrário. Depois de viajar 2h30 de carro desde Tromsø até a fronteira entre Noruega, Suécia e Finlândia, todos querem vestir o macacão e as botas mais quentes possíveis para produzir adrenalina das boas: guiar essas enormes motos de neve, que pesam 250 quilos cada uma, sobre o congelado lago de Goldajärvi.
Mesmo depois da aula de pilotagem rápida para motoqueiros de primeira viagem, é inevitável que alguns tombem a moto na neve fofa. Os mutirões para desatolar os colegas só tornam a aventura mais divertida.
Diferente do verão, quando os nórdicos nadam no lago e curtem o sol da meia-noite, o inverno enche a paisagem de uma bicromia insólita, com a superfície branca do lago de gelo pontuada apenas pelos troncos marrons das árvores secas. O frio convida a uma parada, no meio da expedição, para tomar sopa e chocolate quente em volta da lareira de uma cabana de madeira à beira do lago.
Nos passos de Nansen e Amundsen
Apaixonados pelas grandes sagas das conquistas dos polos na virada do século 19 para o 20 vão se esbaldar nos museus de Tromsø, que recontam parte do passado dessa cidade que foi porto-base para as expedições polares. O Museu Polar, que funciona em um rústico armazém de 1830 de frente para o mar, narra desde histórias de caçadores de ursos e focas até as trajetórias dos heróis noruegueses na corrida dos polos. Ao menos dois desses exploradores ganham destaque aqui: Fridtjof Nansen (1861-1930), que criou o lendário navio Fram de exploração polar (e que se tornou um navio-museu em Oslo); e Roald Amundsen (1872-1928), que pegou o Fram emprestado do conterrâneo para fincar a bandeira da Noruega, em dezembro de 1911, e tornar-se o primeiro homem a atingir o Polo Sul.
Navegando pelo Ártico
A antiga vila de pescadores de Tromsø cresceu a partir dos anos 1700 por ser um porto estratégico e um polo importante de construção naval. Uma jornada por estes confins do Ártico não será completa sem uma navegação pela região – ainda que os fiordes do norte da Noruega não tenham a imponência dos irmãos mais ao sul.
O pretexto para embarcar no moderno Brim Explorer pode ser observar baleias e golfinhos, ver auroras boreais com conforto no barco quentinho ou apenas contemplar do mar os povoados charmosos cobertos por neve. “O visual é sempre espetacular”, orgulha-se o fundador Espen Larsen-Hakkebo. “E o passageiro tem a certeza de estar passeando em uma embarcação ecológica, silenciosa, movida a eletricidade e não poluente.”
Histórias do povo Sami
Pertencente à vasta região do norte da Europa conhecida como Lapônia – o lar do mito do Papai Noel –, Tromsø abriga até hoje uma grande população do grupo originário que habitava aquelas terras originalmente, os Sami. Cerca de 35 mil descendentes desses verdadeiros indígenas lapões vivem na Noruega (a outra metade se espalha entre Finlândia, Suécia e Rússia). Algumas dessas famílias recebem visitas nos arredores de Tromsø.
O encontro com os remanescentes Sami chega a emocionar. Na comunidade onde vive a carismática cantora Anneli Guttorm, dá para alimentar parte de um grupo de 300 renas selvagens que costumam passear pela fazenda e experimentar o bidos, ensopado típico feito com a carne delas. É Anneli quem recebe, conta histórias em volta do fogo, canta e explica sobre a cultura, os trajes e os instrumentos musicais dos Sami. “Amamos a nossa terra e acreditamos que as auroras boreais são lindas visitas dos nossos antepassados”, diz. Ao final do tour, Anneli comanda um belo coral com os visitantes.
Ice domes: hotel de gelo
A 1h30 de Tromsø, um hotel de sete quartos totalmente feito de gelo atrai hóspedes destemidos que não sofrem ao dormir em sacos de dormir resistentes a temperaturas de 30 graus Celsius negativos. O Tromsø Ice Domes é uma construção temporária, erguida com 60 toneladas de gelo ao longo de cinco semanas sempre que chega novembro, para oferecer experiências inusitadas durante o inverno, entre 10 de dezembro e 31 de março.
Formado por dois grandes iglus, o espaço tem instalações decoradas por esculturas de dez artistas que apresentam temas escandinavos como navegadores vikings e ursos polares. Para os menos afeitos a estadas tão intensas, é possível visitar o espaço apenas para um tour com direito a drinks feitos de vodca no bar do hotel ou um chocolate quente na cafeteria do lado de fora – que, por ser o único ambiente não feito de gelo, tem até uma lareira central para quem quiser petiscar algo longe do frio.
Imersão na gastronomia nórdica
Entre uma aventura diurna e as caçadas de auroras à noite, Tromsø convida a deliciosas caminhadas por suas ruas tranquilas, várias delas terminando no mar. Dá para contemplar as embarcações tanto da marina antiga quanto da nova. O reconhecido design escandinavo está presente na arquitetura de prédios como a Biblioteca Pública, o Aquário e a Catedral do Ártico. Igualmente respeitada mundialmente, a gastronomia nórdica pode ser provada desde o café da manhã dos melhores hotéis – com fartura dos bons salmões locais – até as degustações de salame de baleia, rena ou alce nos bares.
O restaurante Fiskercompaniet orgulha-se por servir o premiado melhor bacalhau da cidade. Para experimentar o sanduíche de rena local, o point é o Bardus. Comida mais familiar são os fartos hambúrgueres do Burgr, servidos em meio à decoração inspirada no universo dos videogames. E na Praça Central, pode-se tomar bons vinhos quentes com grãos de amêndoa ou chocolates quentes à beira de uma espécie de lareira ao ar livre.
Reportagem publicada na edição 89, lançada em agosto de 2021.
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