Meus olhos estavam vidrados naquela bolsa de sangue. O tubo de silicone, fino e longo alimentava o meu cateter, e cada gota daquele sangue vermelho borgonha entrava ininterruptamente pelas veias e interior do meu coração. Eu podia sentir aquele tecido vivo tomando forma própria.
Não sei dizer com exatidão o momento em que céu e terra se uniram. Um sentimento de perfeita harmonia invadiu todas as minhas células, sem pedir permissão, e tomou conta da minha alma. A respiração profunda e espaçada anunciava o prelúdio de que seria um dia memorável.
“Vou pedir demissão e vamos realizar nosso sonho de morar em Lisboa”
As palavras saíram da minha boca, agora avermelhada, com tamanha precisão e firmeza que, para alguém que estava inerte até poucas horas atrás, parecia um milagre. Para os mais céticos, uma transfusão de sangue concluída com sucesso. Para mim, um despertar.
“Vamos, Luli”. A resposta dele (marido ou anjo?) veio pronta, carregada de amor e compaixão.
Talvez o medo da morte tenha me dado a coragem que eu precisava para conectar minha mente e meu espírito, em busca da minha unicidade. Entendi que teria que assumir a responsabilidade e abrir espaço para que o novo pudesse se manifestar. O pensamento não bastaria. Apenas a ação abriria o caminho.
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Comecei a trabalhar aos 15 anos com o meu pai. E percebi rapidamente que aquela atividade poderia me oferecer muito mais do que uma remuneração. Exercer uma função me traria uma identidade e um senso de pertencimento. Para uma adolescente que aspirava se tornar adulta, o quanto antes, ali encontrei o meu caminho.
O trabalho sempre foi visceral para mim. Um dos meus maiores prazeres era ser a primeira a chegar no escritório. No dia seguinte de ter sofrido o meu primeiro aborto, estava lá pontualmente às 8h30. Passei anos (muitos anos) na terapia, tentando entender e acessar quem era a Luciana sem o crachá. Era como se eu não existisse sem o meu emprego ou não tivesse valor para a sociedade.
Cresci ouvindo a frase “o trabalho enobrece o homem”. É verdade. Tanto que eu fiquei viciada nisso. Um “vício” bastante conveniente, que nos proporciona crescimento, evolução, conquistas e, no meu caso, amigos que sempre levarei comigo.
Ocupar o cargo de CEO foi um dos maiores privilégios da minha vida. Desenvolver pessoas, com responsabilidade e empatia, para que pudessem, consequentemente, desenvolver o negócio de forma rentável e sustentável, tem sido a minha missão. Pessoas diversas e plurais transformam o mundo.
“Sua visão se tornará clara somente quando você olhar para dentro do seu coração. Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda.” Carl Jung
É essencial reconhecer quando o desconforto que você está sentindo está alinhado com seus valores. Desde que comecei a estudar neurociências passei a investir a maior parte do meu “share” de leitura em autores e assuntos que não tinham a ver com carreira. Reconheço que todos os clássicos do mundo corporativo que tive a oportunidade de ler ao longo dos anos me proporcionaram conhecimento técnico. Esses livros ajudaram a incrementar a minha caixa de ferramentas, o que foi fundamental na minha ascensão como líder.
Fato é que, nesse processo de autoconhecimento, me deparei com algumas preciosidades como “Consciência quântica” do Ph.D. em física nuclear Amit Goswami, ou mesmo “A sabedoria da natureza”, do professor de taoísmo e I Ching, Roberto Otsu. Mas o livro que mais me impactou foi “A Jornada da Heroína” da Ph.D., psicoterapeuta e escritora Maureen Murdock, que validou a minha necessidade de adequação aos valores masculinos e o eterno conflito entre o que a sociedade patriarcal espera de nós, mulheres, e o que realmente somos. A leitura desse livro transformou as noites do casal. Marcão foi praticamente obrigado a ouvir um audiobook.
Mulheres fortes podem dizer não
Renunciar ao cargo de CEO tem um peso. Sou muito grata por ter ocupado a mais alta posição na hierarquia corporativa. Uma posição desafiadora, estratégica e de muita influência. E é claro que me preocupo com a mensagem que estou passando para as mulheres que almejam chegar à liderança. Não quero decepcioná-las, e muito menos desencorajá-las. A nossa subida só está começando. Respeitar o seu momento de vida é o mais importante a ser feito. No entanto, minha intenção é enfatizar que fazer escolhas é uma forma de poder.
Poder é um termo que se originou a partir do latim “possum”, que significa “ser capaz de”. É a habilidade de influenciar o comportamento de outras pessoas e o curso dos eventos.
Para quem costumava associar sucesso apenas com trabalho, esse meu despertar proporcionou a valorização da Luciana sem o seu crachá.
“Mamãe, quando eu crescer vou escrever sobre a sua história de coragem”. Isadora, 10 anos.
Experimente ouvir a voz do seu coração. Sua felicidade virá de dentro.
Desejo seguir aprendendo, impactando positivamente a sociedade, sem limitações, sem pressa e com muita intenção. Desejo contar novas histórias de sucesso e fracasso. Desejo seguir trabalhando pela minha visão, com integridade e honestidade. Desejo seguir construindo pontes, e assim aproximar empresas e seus objetivos, empresas e seus públicos, empresas e causas e, sobretudo, reunir pessoas com o mesmo propósito em torno de objetivos em comum. Desejo seguir desenvolvendo mulheres para que elas possam chegar aonde bem entenderem. Desejo resolver novos problemas, com novos olhares. Mas acima de tudo, desejo cuidar da Luciana para que ela tenha sempre coragem de mudar, e partir para novos ciclos.
“Eu não conheço o futuro. Eu não vim aqui te dizer como isso vai acabar. Eu vim aqui te dizer como vai começar.” Morpheus (Matrix, 1999)
Luciana Rodrigues é conselheira do board da Junior Achievement, membro do conselho da Iniciativa Empresarial pela Igualdade e do comitê estratégico de presidentes da Amcham. Também é aluna de pós-graduação em neurociências e comportamento.
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