O show do milhão versus o show de Milão

  • Post author:
  • Reading time:8 mins read
Divulgação

O vermelho se destacou no Salão do Móvel de Milão de 2023 como a cor do ano. Na foto, show-room da marca Paola Lenti

Com shape futurista, o sofá Free System, que o gênio italiano Claudio Salocchi (1934-2012) desenhou há exatos 50 anos, foi um dos grandes destaques do estande da marca Acerbis – para os não iniciados, era o último grito na abertura do Salão do Móvel de Milão, evento mais importante do design do planeta, que aconteceu semana passada, de 18 a 23 de abril, movimentando cerca de 350 mil pessoas do mundo inteiro – estima-se que a caravana brasileira somava mais de 5 mil pessoas (noutros tempos, o número de forasteiros oriundos do lado de cá da fronteira chegou ao triplo).

Mais compacto e enxuto, com masterplan reconfigurado, dessa vez 2 mil marcas apresentaram seus “lançamentos”, apontando para uma zona de conforto perfeitamente justificável – segundo dados da Associação dos Fabricantes Italianos de Móveis (Assarredo), no ano passado a feira girou mais de 2 bilhões de euros, praticamente metade da receita da era pré-corona.

Ainda assim, o discurso é otimista. “A 61ª edição do Salone del Mobile de Milão foi um sucesso internacional e superou expectativas. O número de participantes foi excepcional, trabalhamos radicalmente para trazer novos significados e valores à feira e criar novas experiências para os visitantes. Aprendemos várias lições importantes com esta edição: que é realmente possível redesenhar um grande evento como o Salone para impulsioná-lo para o futuro, que a sustentabilidade é realmente alcançável quando todo o sistema trabalha em conjunto”, declarou Maria Porro, presidente do evento. Considerando que a cenografia, dentro do espectro da construção civil, é o inimigo número um da natureza (já que pouco se aproveita e tudo vai pra caçamba), é louvável que alguns expositores tenham recauchutado suas cenografias de anos anteriores.

Juntar forças pelo bem comum, aliás, é indispensável. Hoje, com a crise econômica na Europa, compensa muito mais para a indústria apostar numa cadeira já testada e aprovada pelo grande público, que já entra na vitrine com venda garantida, do que investir cifras estratosféricas em novos protótipos ou pesquisas de matérias-primas. Mas como matar a sede de novidade do mercado? É aí que entra em cena um outro paliativo: a cor. Não existe transformação mais rápida, ligeira e rasteira do que uma boa demão de tinta. Assim, móveis que já são sucesso de vendas passam a ser reeditados em novas paletas, o que também soa novidadeiro aos olhos menos treinados. Não significa que não existam lançamentos interessantes, ao contrário. Mas, no geral, vê-se mais do mesmo – principalmente releituras de grandes mestres do passado, que continuam atemporais. 

















Em algum lugar entre o trendy e o déjà vu

Para os caçadores de tendências, o vermelho desponta na frente, atrás de variações de terracota, verde, azul e, é claro, dos 60 tons de bege e dos 50 de cinza (em time que está ganhando, não se mexe, e o consumidor ainda tem uma quedinha por tons neutros, com medo de derrapar). Móveis modulares, componíveis, também continuam em alta, como reflexo do confinamento social que obrigou as pessoas a observarem mais e melhor o espaço que habitam – casas mais integradas, com menos barreiras visuais, onde muitas vezes o próprio estofado ou bufê operam como pontos de hierarquização espacial.

Os sofás também baixaram de altura, com assentos quase rasteiros. Na onda do escapismo, com certa dose de humor para romper a formalidade excessiva da decoração mais cartesiana, as assimetrias e desproporções de look pós-moderno estão todas lá, ainda mais acentuadas. São poltronas com assentos maiores, quase do tamanho de uma cama, encostos mais espessos, numa nova ergonomia de conforto que sugere um jeito de sentar (ou de se jogar) mais casual, outro reflexo da pandemia, que apontou para uma casa para viver mais e mostrar menos – mas sem perder a plasticidade, afinal, na era da digitalização da vida, ninguém resiste a uma selfie, e o cenário íntimo precisa estar, digamos, apresentável, dentro da incessante busca de pertencimento que assola a humanidade. 

Pura antropologia. A decoração é, assim como a moda, um reflexo dos nossos tempos e forma legítima de auto expressão e códigos sociais de aceitação. Só que, ao contrário da moda, ela demanda menos renovação. Embora uma bolsa da Bottega Veneta possa custar o mesmo montante de uma poltrona Mole (clássico de Sergio Rodrigues que orbita na casa dos R$ 70 mil), são bens de consumo muito diferentes – e ninguém troca de sofá como quem troca de calça jeans. 

Também como upcycling das edições anteriores do Salone, crescem os móveis tubulares, metálicos/cromados, as pelúcias, os sofás curvos, detalhes manufaturados, tecidos texturizados (bouclês, patchworkings, bordados e outros relevos). Nas paralelas, no evento batizado de Fuorisalone – circuito que fatia a cidade em distritos de design, para a exibição de grandes labels tanto da movelaria quanto da moda, encontramos um pouco mais de ousadia em forma, volume e textura. 

Leia também:

Osklen Art Series revela colaboração com Instituto Burle Marx
O legado de Marianne Peretti, artista dos principais vitrais de Brasília
12 tendências de design de cozinha para esquecer em 2023
Como Paloma Danemberg fez do upcycling de móveis um negócio de luxo

Paola Lenti, a diva italiana da mobília de área externa, inaugurou seu novo showroom com um espetáculo de arrancar o fôlego, principalmente pelas tramas e cores dos estofados e tapetes – tingidos por ela própria, sem terceirizações, o que faz de um produto Paola Lenti um dos mais exclusivos. Na Moooi, marca holandesa que sempre causa comoção, o grande lançamento é a poltrona Kiss, de Marcel Wanders, inspirada no sofá de Salvador Dalí – olhar para o passado continua sendo a receita infalível de sucesso no presente, assim, ninguém precisa provar nada pra ninguém (tampouco convencer que uma boca é a forma perfeita para se sentar). 

Grandes labels de moda, como Louis Vuitton (que trouxe versões metalizadas dos objetos de desejo dos Irmãos Campana), Hermès e Dior responderam pelas exibições mais disputadas. Na terceira delas, Philippe Starck, o papa do desenho contemporâneo, criou a versão macho-alfa da sua poltrona Miss Dior, lançada no ano passado e batizada, é óbvio, de Monsieur. Ainda assim, as novas estampas e o espetáculo cenográfico garantiram o pódio da Dior na temporada. 

No pregão dos preços, continua tudo muito exorbitante, incluindo mesas ao custo do sonho da casa própria, mas a tradicional Kartell, que revolucionou a indústria com o desenvolvimento do plástico injetável mais de meio século atrás, defende a democratização do design a partir da exploração do polímero (devidamente reciclado, é claro). Nessa métrica, convocou um dos mestres mais incensados do segmento – e responsável pelos móveis mais caros da vez – para desenvolver uma linha mais pop.

“Os produtos Kartell são pensados com funcionalidade, ergonomia, plasticidade, meio ambiente e originalidade, já que eles contratam os maiores criativos do planeta. Isso vem ao encontro das expectativas das novas gerações, mais preocupadas com essas questões todas e com a origem de cada coisa. Considero um divisor de águas na marca, por exemplo, a linha K-Wait, do Rodolfo Dordoni, composta por sofá, chaise, pufe e poltrona. Entenda a sacada: eles contrataram simplesmente o Dordoni, um dos nomes mais aquilatados do planeta, conhecido pelos sofás da Minotti e da Molteni (peças que estão entre as de maior valor no mercado, restritas a um público de altíssimo poder aquisitivo), para atender ao desejo de pessoas que não podem comprar essas marcas, mas que sonham com um desenho do mestre. Vai ser um estouro”, profetiza a empresária Sandra Bork, da Montenapoleone, responsável também pela Kartell no Brasil.

Com mais ou menos glam, o resumo da ópera é: cada um quer vestir (ou investir) na casa de um jeito. E sob esse aspecto, Milão continua sendo um closet tipo infinito, com araras para todos os gostos – e bolsos.

*O jornalista Allex Colontonio, 46 anos, diretor de conteúdo da Forbes Life Design, é crítico e curador de arte e design. Publisher da revista-artsy Pop-se, assina exposições importantes no circuito, além de grandes espetáculos musicais. Foi diretor das revista Casa Vogue, Wish Casa, Kaza e Giz, além de presidir o Memorial da América Latina. Cobre o Salão de Móvel de Milão há quase duas décadas.

O post O show do milhão versus o show de Milão apareceu primeiro em Forbes Brasil.

Deixe um comentário