Nos últimos meses, entre reuniões e demandas profissionais, a representante comercial Mariana Craveiro, de 28 anos, teve uma companhia inseparável no home office: o vira-lata Pingado, adotado no início da pandemia. Agora, com a proximidade de voltar ao trabalho presencial, ela se diz apreensiva com a adaptação a uma nova rotina.
“Essa vai ser a parte mais difícil para mim na “volta à realidade”. Pingado estava acostumado à minha presença 24 horas. Para me preparar, me amparei com dicas de como manter o ambiente mais rico para ele, com distrações e petiscos, busquei adestramento, creche. Fiz de tudo, mas ainda fico preocupada”, conta Mariana.
Preparar os animais de estimação para o desgrude é um entre vários dilemas para quem teve opção de trabalhar em casa na pandemia e terá que retornar ao presencial, movimento previsto em muitas empresas nas próximas semanas. A volta implica também reaprender a encarar o trânsito e o transporte público, voltar a socializar e comer fora, conviver menos com os filhos, deixar o ambiente controlado do lar, doce lar. Mas, em tempos em que tanto se falou sobre prevenção e cuidados, há formas de tornar esse retorno menos sofrido, para o bem da saúde mental.
“Vamos precisar de tolerância, com os outros e conosco. A vida dentro de casa se acomodou de tal maneira que é como se estivéssemos desacostumados a compartilhar e negociar nossos costumes, modos de expressão, de afetos e contrariedades”, explica o psicanalista Christian Dunker, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
A boa notícia, afirma, é que isso tende a passar com o tempo. A dica é entender e dar espaço para um tempo de transição.
Acordar mais cedo
Para muita gente, foi fácil se habituar a acordar em cima da hora do expediente. Afinal, o “local de trabalho”, o computador, estava logo na mesa ao lado. Com a necessidade de sair de novo, o corpo precisará se reacostumar a horários. Por isso, o primeiro conselho é mudar o ciclo de sono. Em outras palavras, passar a dormir mais cedo.
“É uma questão de estabelecer uma rotina de novo. Para ter o horário de acordar, vai ser preciso ter o de dormir. Se a pessoa vai ter que acordar às 6h, é bom deitar às 22h. Com um sono regularizado, de mais ou menos oito horas, o resto irá se regulando aos poucos. Existe toda uma questão hormonal e física baseada nisso”, diz a psiquiatra Danielle Admoni, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Guardar pijamas e ressocializar
Muita gente aposentou o guarda-roupa social com a jornada de trabalho em casa e adotou roupas mais informais quando a câmera do Zoom não estava ligada. Devolver o pijama ao armário pode ser balde de água fria, mas arrumar-se para sair também tem suas vantagens para a mente.
“Além de se colocar apresentável para o outro e para si mesma, que é o mais importante, arrumar-se ajuda na construção da motivação para sair de casa”, diz Danielle.
Vale até separar a roupa do trabalho na noite anterior, afirma:
“Isso ajuda a planejar o dia seguinte. A rotina tem um potencial organizador, fisicamente e psiquicamente também. É importante encarar de maneira positiva.”
Sair de casa
Para muitos, a casa foi praticamente um refúgio diante da incerteza e da agressividade da pandemia. Natural que seja difícil sair desse lugar de conforto.
“Não dá para imaginar que as pessoas vão abrir a gaiola e já sair voando como passarinhos. Primeiro vão querer voar para a árvore mais próxima, sentir que podem retornar. É importante respeitar os sinais de angústia, de ansiedade e medo”, diz Dunker.
Com o tempo, reforça, será possível restabelecer a relação com a casa e a rua:
“Antes de tudo isso, tínhamos uma ideia de que o lar era legal porque é o lugar para onde a gente volta. Curtir a rua também é bom. Permitir-nos lembrar disso vai até tornar a casa mais interessante.”
Voltar a enfrentar o trânsito e o transporte público
Para quem escapou de buzinas e engarrafamentos, não vai ter jeito: no início, a volta ao trânsito vai irritar, e a sensação de perda de tempo será inevitável. Mas, se o deslocamento for também impossível de evitar, a dica é tentar torná-lo mais leve.
“É essencial buscar coisas prazerosas nesse trajeto. Escutar uma música, ler um livro. Usar esse tempo aparentemente perdido para fazer algo bacana para si. Vale pensar: “Ok, o trânsito é chato, o trajeto pode ser longo, mas já que estou aqui, vou tentar aproveitar da melhor maneira possível”, aconselha Danielle.
Menos convívio com os filhos
Com escolas fechadas e sem o tempo de deslocamento ao trabalho, pais e filhos ganharam mais tempo juntos. É verdade que muitas vezes a rotina ficou caótica, mas o aumento do convívio foi benéfico para muitas famílias. Por isso, com a volta ao trabalho presencial, as mudanças não devem ser bruscas. As recomendações variam com a idade dos filhos e a situação familiar, diz o pediatra Daniel Becker, professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.
No caso de crianças pequenas, o ideal é que os pais negociem com os empregadores retomar a jornada gradualmente, para acostumar as crianças aos poucos e reduzir fantasias de que os pais desapareceram.
“Pais e mães podem alternar ficar mais horas por dia em casa no começo, por exemplo – diz. – Quem morar perto pode fazer um break para dar um pulo em casa, ou pegar mais cedo na escola, levar na pracinha, brincar ao ar livre. E, durante o expediente, valem telechamadas, esteja a criança em creche ou com cuidadores.
Para crianças mais velhas, os pais devem abrir o jogo, conversar, explicar as mudanças e até levar ao local de trabalho.
“Sofrimento e alterações de comportamento são esperados no início. Os filhos podem ficar mais grudados, apegados, chorosos, ou até mais birrentos e agressivos. Comportamento é uma forma de comunicação. É importante acolher esse sentimento e conversar. E, no tempo que estiverem juntos, interagir e brincar bastante, principalmente ao ar livre”, completa.
Se o sofrimento apertar, é importante buscar apoio psicológico.
Animais de estimação sozinhos em casa
Pets foram “colegas de trabalho” frequentes no home office. Assim como no caso das crianças, as mudanças também devem ser graduais com eles. E, desde já, os tutores podem começar a fazer pequenos treinos com os animais em casa.
“Para ficarem sozinhos, os cachorros precisam de distração e atividades. Uma dica é pelo menos uma hora ao dia deixá-los sozinhos em um cômodo diferente, com algum estímulo que os entretenha. Valem petiscos escondidos pela casa, brinquedos interativos”, sugere Sabrina Vidal, gerente-geral e adestradora da Escola do Latir, na Zona Oeste de São Paulo.
Sem estímulos e sozinhos, os cães começam a procurar o que fazer, e muitas vezes isso pode ser destruir algo em casa.
“Se o cachorro for muito ansioso, o ideal é começar com períodos reduzidos várias vezes ao dia e ir aumentando gradativamente, até que ele fique confortável. Aos poucos ele vai entender que está tudo bem ficar sozinho, que ele vai ter o que fazer”, completa Sabrina.
As creches podem ajudar no adestramento, na socialização e no gasto de energia.
Voltar a usar banheiro compartilhado
Além da comodidade, o banheiro de casa virou local de limpeza controlada em tempos de Covid. Como voltar a compartilhar um espaço depois de tanta recomendação de higiene e distância?
“O banheiro de casa pode estar malconservado, empoeirado, mas sentimos que é limpo porque é nosso. Não sentimos o próprio cheiro, a própria bagunça. Ao voltar a dividir o banheiro com o outro, a primeira coisa vai ser reduzir as expectativas de ordem. E se abrir ao aprendizado de como se misturar de novo”, diz Dunker.
Tentar manter esse e outros espaços coletivos em boas condições, de todo modo, ajudará a todos no estranhamento inicial de voltar ao uso compartilhado.