No dia 21 de setembro, data que seria considerada histórica para o Cruzeiro Esporte Clube, Ronaldo Nazário hospedou-se no hotel Fasano, em Belo Horizonte. Ele não estava ali apenas para garantir sua presença logo mais no estádio Mineirão. Durante todo o dia, desde o café da manhã, ele promoveu, em uma sala fechada, a primeira reunião com seu conselho consultivo, o CEO do clube, toda a diretoria e a consultoria Bain & Company.
A Forbes acompanhou com exclusividade essa imersão restrita e estratégica, na qual foi realizado o balanço das finanças e dos passivos do clube desde a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), a primeira do tipo no país, e foram discutidos os planos para a próxima década. Ronaldo conduziu a reunião como dono de 90% da SAF e como presidente do conselho de administração do clube.
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Na véspera de completar 46 anos, Ronaldo, na ponta da mesa, fez questão de relembrar essa curta e já bem-sucedida história à frente do time no qual estreou como profissional, três décadas atrás: “Tudo começou com a ligação do Pedro Mesquita (chefe do banco de investimentos XP), que me convidou para assumir o Cruzeiro com uma ‘pequena dívida’ de mais de R$ 1 bilhão”, contou, com uma larga gargalhada. “Eu, mais maluco do que ele, aceitei de primeira”, completou, arrancando risadas dos demais. Estava acontecendo ali uma espécie de concentração inédita no futebol brasileiro, uma reunião de negócios e gestão, “algo histórico”, como muitos repetiram ao longo do dia.
Ronaldo foi trazendo para perto dele profissionais de diferentes competências, a maior parte deles mineira — e sim, cruzeirenses. “Segui adiante por uma questão emocional: eu tenho uma dívida com o que o futebol me proporcionou. Eu só não imaginava tantas complexidades e obstáculos, mas fomos enfrentando e vencendo cada um deles. A gente tem muito trabalho, queremos ser diferentes, então precisamos planejar todos os passos e fazer de forma também diferente. Reunimos pessoas brilhantes, em um conselho consultivo, para fazer do Cruzeiro um clube especial e que volte à Série A como protagonista. Temos tudo na mão para fazer um projeto espetacular”, afirmou. [Após a entrevista, o time se consagrou campeão da Série B em 30 de setembro, garantindo a volta para a elite do futebol brasileiro].
“Eu me divertia muito dentro de campo. Tanto no futebol como nos negócios, o importante é saber se divertir com a rotina e com as responsabilidades. A maior diferença é que o mundo empresarial não tem uma final todo ano, temos projeções para uma década inteira.”
Ronaldo Nazário
Como empreendedor e executivo, Ronaldo enfrentou com a mesma habilidade dos gramados uma negociação financeira delicada para a compra do primeiro clube onde jogou profissionalmente e a repercussão negativa com a saída do goleiro Fábio. “Tem sido um desafio gigante não só na área esportiva, onde a torcida celebra e ressurge através das conquistas dentro de campo, mas também pelo empenho nesses primeiros nove meses de muito trabalho nos bastidores.”
Ao seu lado, estavam, como integrantes do conselho consultivo, altos executivos com trajetórias profissionais em reconhecidas corporações brasileiras e multinacionais, como McKinsey, Softbank, Telefonica, Ambev, Meta, Google, Natura e Santander. Dos sete integrantes, quatro estavam presentes: Pedro Mesquita, chefe do banco de investimentos XP, ocupando a cadeira do comitê financeiro (cruzeirense de Três Pontas, MG); Eduardo Navarro, diretor global de comunicação, marca, assuntos públicos e sustentabilidade na Telefónica Espanha, à frente do comitê de estratégia e ESG (cruzeirense, de Belo Horizonte); Denis Caldeira, conselheiro de diferentes empresas e instituições, na liderança do comitê de tecnologia; e Nicola Calicchio, senior advisor do Morgan Stanley, na presidência do conselho consultivo (cruzeirense, também de BH). Os outros três são: Amir Cunha (compliance), Ricardo Dias (marca e inovação) e Lilian Guimarães (RH e cultura).
De um lado, entre gráficos, números e mais números, eles comemoraram pequenas conquistas, como crédito para voltar a comprar até mesmo o pão para o lanche nos centros de treinamento. Por outro lado, dedicaram tempo nas discussões sobre projetos de longo prazo, cultura organizacional, práticas de ESG e transformação digital. O foco, entretanto, foi mesmo no planejamento para a redução e o pagamento da dívida de R$ 1,146 bilhão em até 12 anos, além de pensar em oportunidades para a geração de novas receitas, de patrocínios a projetos inovadores, como a criação de um super app.
“Esse encontro tem a ambição de tornar o Cruzeiro referência mundial em gestão de um clube de futebol. A junção de profissionais de altíssima qualidade, que daria inveja a qualquer empresa privada, com a paixão pelo que estamos construindo é única no país”, afirmou Pedro Mesquita, que tem o pacto de seguir com Ronaldo na operação do negócio. “Fiquei impressionado com o Ronaldo como gestor e líder desde o primeiro contato. Vi uma pessoa iluminada, com muito conhecimento e de muita visão”, afirmou.
O Cruzeiro SAF passou efetivamente para a gestão de Ronaldo e seu grupo empresarial em abril deste ano, quando as partes efetuaram a assinatura do contrato de compra de 90% das ações da Sociedade Anônima do Futebol. A SAF é um tipo específico de empresa, criado pelo Congresso em agosto de 2021, por meio da Lei 14.193/2021. Com a legislação, clubes de futebol podem migrar de associação civil sem fins lucrativos para empresa. Já são mais de 20 no país, com o Cruzeiro puxando a fila ao lado de Vasco e Botafogo.
“As dívidas do Cruzeiro permanecem na associação, possibilitando que a SAF se erga de forma sólida e estruturada, blindada contra a agressão do passivo pretérito”, explicou Alexandre Cobra, secretário-geral do Cruzeiro. Ele disse ainda que, no processo, o Cruzeiro optou pela recuperação judicial, para reduzir e alongar a dívida de modo que ela caiba no fluxo de caixa e possa ser quitada entre sete e 12 anos.
Como o valor patrimonial da SAF foi avaliado em cerca de R$ 440 milhões, a compra dos 90% por Ronaldo representou um investimento da ordem de R$ 400 milhões, sendo uma injeção imediata de R$ 50 milhões e o compromisso de aportar mais R$ 350 milhões em receitas incrementais no período de cinco anos. “Encontramos um cenário de destruição de valor sem precedentes: um elenco envelhecido, acúmulo de salários atrasados e uma dinâmica de poder paralelo na mão dos jogadores mais antigos. A infraestrutura, referência nos anos 1990, foi sucateada. Traçamos objetivos muito rapidamente na área esportiva e também administrativa”, afirmou o CEO do Cruzeiro, Gabriel Lima.
Entre as principais ações, Lima destacou a reorganização do passivo da associação por meio de recuperação judicial, aumento da receita utilizando como principais alavancas o engajamento da torcida (são 9 milhões de torcedores, mas eram apenas 8 mil sócios-torcedores), atração de novos patrocínios e a montagem de uma estrutura com profissionais de excelência, processos sólidos e governança.
O diretor financeiro, Raphael Vianna, enfatizou que, se não fosse o passivo da associação, a operação do futebol estaria superavitária. Entre as conquistas deste ano, ele apontou o pagamento de R$ 58 milhões em dívidas, incluindo os R$ 34 milhões devidos à Fifa (Federação Internacional de Futebol). Disse ainda que as receitas advindas do sócio-torcedor e das bilheterias superaram as expectativas. Para ele, um dos fatores de sobrevivência neste ano é o resultado do time em campo. “Precisamos de tempo para equalizar o caixa. A situação ainda é grave”, ponderou.
Ainda assim, a projeção é de receita de R$ 212 milhões em 2023 e de R$ 430 milhões em 2032, sendo impactada pela performance esportiva do clube. “Prevemos aumento gradativo na classificação do Brasileirão, ficando, a partir de 2025, entre os top five todos os anos até 2032”.
Na opinião de Pedro, o futebol não dá lucro em nenhum lugar do mundo. “Ninguém compra um clube para ter lucro ou para ter dividendo, pois todo o dinheiro que gera é reinvestido para ficar ainda maior, ganhar mais títulos e tudo mais. Contudo, ganha-se dinheiro com o futebol na valorização da franquia: quanto vale no dia que você comprou e quanto valerá no dia de uma possível venda. O Ronaldo mira, primeiro, construir um legado. O Cruzeiro o projetou para o mundo. Ele volta para resgatar isso e projetar o futuro. E, se der certo, em 10 anos, o Cruzeiro vai valer bem mais do que o dinheiro que ele colocou hoje.”
As contas do CEO
“Eu era diretor de negócios no Valladolid quando ele avisou a mim e a outras pessoas de confiança que ia comprar o Cruzeiro. Em abril, fui confirmado como CEO”, conta Gabriel Lima. “A gente encontrou um cenário muito desafiador — um elenco um tanto envelhecido, que já estava há alguns anos na segunda divisão, e muitas dívidas de curto prazo, muita dívida trabalhista… Em três anos, a destruição de valor do Cruzeiro foi impressionante. A dívida era 11 vezes o faturamento. O risco de fechar as portas era real. No início, estabelecemos um comitê de caixa diário, porque o problema era tão grave que você tinha que definir diariamente o que ia e o que não ia pagar; depois passou a ser semanal e agora é mensal.”
O custo fixo do elenco, segundo Lima, foi baixado de R$ 96 milhões para R$ 40 milhões. O número de sócios-torcedores subiu de 8 mil para 69 mil, o que representa quase R$ 35 milhões no caixa.
O acordo com o Mineirão foi renegociado — antes, praticamente todos os jogos davam prejuízo; agora dão lucro (a torcida do Cruzeiro é responsável pelo quarto maior público médio do Brasil). Além disso, houve o aporte efetivo de R$ 50 milhões do bolso do Ronaldo e mais o compromisso dele de chegar a um aporte total de R$ 400 milhões caso o aumento da receita média não atinja esse valor em cinco anos. O faturamento de 2022 deve ficar entre R$ 160 milhões e R$ 180 milhões.
“O que fizemos aqui serviu como vitrine: os outros clubes, vendo que está dando certo, vão querer replicar. E isso vai se tornar um negócio muito atrativo para os investidores, porque o mercado brasileiro tem um potencial tremendo — se a MLS [liga de futebol dos EUA] é vista em 100 países, o futebol brasileiro pode muito mais do que os 13 países atuais”, afirma o CEO.
Dez anos de Ronaldo gestor
Ronaldo foi capa da Forbes pela primeira vez em dezembro de 2012, quando dava os primeiros passos no mundo empresarial. Perguntamos o que ele aprendeu nesses 10 anos como gestor: “Posso dizer que sou um gestor atento a tudo o que envolve e impacta os negócios onde minhas empresas estão inseridas. Claro que não sei tudo, mas sou um ótimo ouvinte e aprendiz quando necessário. Ao longo da minha carreira, eu me aproximei de gente muito boa, e por isso hoje tenho um time de profissionais bastante talentosos e especialistas em diversos assuntos. Junto com eles, faço questão de acompanhar as decisões cruciais que precisamos tomar. E, quando preciso, eu tomo as decisões, mesmo que sejam difíceis. Quero deixar um legado em tudo o que nos propomos a fazer. Funcionava no campo e tem funcionado também nos negócios”.
O Fenômeno revela que seu maior aprendizado nesse período foi saber distinguir em que ele é “muito bom” e quais são suas limitações para, assim, colocar as pessoas certas nos lugares certos, ajudando-o a tomar decisões acertadas.
E o que é mais divertido? Jogar futebol ou administrar um negócio? “Eu me divertia muito dentro de campo. Mas a rotina de um jogador de alto nível também tem muito desgaste; as pessoas não têm ideia de como somos exigidos e de tanta coisa que abrimos mão. Mas, tanto no futebol como nos negócios, o importante é saber se divertir com a rotina e com as responsabilidades. A maior diferença é que o mundo empresarial não tem uma final todo ano, temos projeções para uma década inteira.”
Ronaldo criou uma rede de negócios no esporte e no entretenimento dividida em quatro frentes: Oddz Network, holding de negócios com foco em marketing, mídia, conteúdo e entretenimento que tem no portfólio empresas como Octagon e Beyond Films; R9 Gestão, empresa de gestão de patrimônio e financeira para atletas de alta performance; Tara Sports, holding focada na aquisição e compra de clubes de futebol, como Real Valladolid e Cruzeiro; e Fundação Fenômenos, com foco em projetos sociais. Debaixo desse ecossistema, estão atletas como Gabriel Jesus, Tamires Dias, Róger Guedes, Gabriel Girotto e Cássio, além de marcas como Ambev, J&J, Bradesco, Itaú, XP, Oi, TIM, Red Bull, Nike, Mizuno, Mastercard e várias outras. O faturamento somado dessas empresas gira em torno de R$ 450 milhões anuais.
Sobre a volta à Série A, passada a euforia da conquista, a ordem é pé no chão. “Quero mostrar que o futebol no Brasil não precisa ser sempre esse universo de supervalorização e dívidas sem fim. Óbvio que vamos precisar investir para ter um time mais competitivo. A Série A é bem mais difícil. Mas vamos fazer isso dentro de um modelo de gestão responsável e eficiente. Quando chegamos, o cenário era absolutamente caótico. Viemos para mostrar que é possível gastar melhor e menos para alcançar os mesmos objetivos.”
Para Ronaldo, a profissionalização no esporte, não só do Ronaldo vibrando com a ascensão do Valladolid, outro time do qual é dono, à divisão principal do futebol espanhol — a conquista foi seguida pelo pagamento de uma promessa considerada “maluca” por seus assessores: um tour de 500 quilômetros de bicicleta elétrica entre Valladolid e Santiago de Compostela, entre 5 e 8 de junho futebol, é um processo irreversível. “O Brasil está criando agora um mercado que já deveria ter sido criado décadas atrás. Temos profissionais qualificados para isso”, acredita. “Comigo e com meu time à frente, a torcida e o mercado não verão um Cruzeiro irresponsável nunca mais.”
Reportagem publicada na edição 101, lançada em setembro de 2022
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