O legado de Marianne Peretti, artista dos principais vitrais de Brasília

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Stéphane Charpentier

Detalhe dos vitrais desenhados por Marianne Peretti para a Catedral de Brasília

Quem conhece, sabe; quem não conhece, melhor se preparar. Ao passar por uma pequena galeria subterrânea escura e adentrar o luminoso interior da Catedral de Nossa Senhora Aparecida, em Brasília, sente-se um baque. O pescoço tomba para trás e os olhos, boquiabertos, começam a passear por um gigantesco vitral colorido, azul, verde, branco, com um detalhe vermelho em um ovo enigmático.

Ele veste os 16 pilares em formato de bumerangue, desenhados por Oscar Niemeyer (1907-2012), unidos por uma circunferência de 70 metros de diâmetro a 42 metros de altura. A obra translúcida, de 2.240 metros quadrados, é assinada pela vitralista, escultora e desenhista Marianne Peretti, a única mulher na equipe do arquiteto que pôs a capital federal em pé.

A cobertura da catedral é a obra-prima da artista plástica com extensa produção, principalmente no Brasil e na França. Marianne morreu dia 25 de abril, aos 94 anos, em Recife. Havia 35 anos que ela morava em sobrado histórico, em Olinda, uma casa-ateliê com um grande quintal sob a sombra de um cajueiro. A saúde piorou desde janeiro, quando contraiu Covid-19 e foi internada.

Stéphane Charpentier

Marianne Peretti em 2015

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Você nunca tinha ouvido falar no nome dela? Não está só – a própria Marianne se chateava com isso. “Eu tenho uma mágoa como mulher. Acho que as mulheres são não bem reconhecidas. Ou são reconhecidas, mas não na medida que deveriam ser.”

Ainda em Brasília, ela é a autora do vitral do Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves (na praça dos Três Poderes); do painel de vidro transparente (2,60 metros x 8) e do vitral da capela do Palácio do Jaburu; da obra Araguaia (2,45 metros x 13,10) no Salão Verde, da Câmara dos Deputados; do vitral sobre o túmulo de Juscelino Kubitschek (dois planos superpostos de 4,5 metros de diâmetro), no Memorial JK; painel da fachada do Superior Tribunal de Justiça (colunas de concreto e vidro, 10,40 metros x 80), feito logo após o vitral da Catedral, construído entre 1987 e 1989.

Acervo Memorial JK

Vitral sobre o túmulo de Juscelino Kubitschek (dois planos superpostos de 4,5 metros de diâmetro), no Memorial JK, museu que preserva a biblioteca, a réplica do escritório e as roupas do ex-presidente

FRANÇA COM PERNAMBUCO

Filha de uma francesa com um pernambucano (uma “pernambucafranca”, como definiria Vinicius de Moraes), Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasce em Paris, em 1927. Com 8 anos, começa a demonstrar interesse pelo desenho. De forma prematura, toma gosto por museus e galerias. Cresce cercada por intelectuais e artistas.

Aos 13, passa pelo horror da Segunda Grande Guerra, fugindo da França com a mãe em um trem de feridos. Retornam em um mês, e, ainda durante a guerra, Marianne estuda os princípios do desenho e da pintura. Em 1947, em Montparnasse, bate ponto na Académie de la Grande Chaumière, e faz sua viagem de estreia para o Brasil, de visita à família, vivendo um ano em Recife.

Ao retornar para a França, intensifica a produção de ilustrações para livros e revistas como a Vogue. Cinco anos depois, abre a primeira exposição individual em Paris, na Galeria Mirador, Place Vendôme, recebendo elogios de Salvador Dalí. No vai e vem entre a Europa e a América do Sul, em um navio rumo ao Brasil, em 1953, conhece Henry Albert Gilbert, empresário inglês que vive do lado de cá do Atlântico – o casamento acontece no mesmo ano, e seu endereço passa a ser São Paulo.

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Três anos mais tarde, nasce a Isabella, sua filha única. E outros três anos para o fim do casório – fato que não separa Marianne do Brasil. Nesse período, cria a vitrine de 130 lojas da joalheria H. Stern. Na 5ª Bienal de São Paulo (1959), ganha prêmio com a capa do livro As Palavras, de Jean-Paul Sartre.

Arquivo Pessoal

, Peretti com cerca de 30 anos (final da década de 1950), época em que assinou 130 vitrines da joalheria H. Stern

Na década de 1960, emenda fases morando em São Paulo, Recife e Paris, dividindo a produção entre livros, exposições, painéis e as primeiras intervenções na arquitetura moderna. Em 1971, toma contato com o trabalho de Niemeyer ao assistir, em Paris, uma entrevista com o arquiteto. Encantada com o prédio da Editora Mondadori, em Milão, a artista o procura no Rio de Janeiro.

Um ano depois fica pronto seu primeiro vitral em Paris, no Centre de Formation d’Apprentis de l’Équipement Électrique Delépine. Já a primeira obra em Brasília, acontece em 1976, no Palácio do Jaburu. Sua fama se alastra Brasil afora. Esculturas e painéis aparecem em obras de arquitetos como Zamir Caldas, Glauco Campello e Gilson Paranhos. E é na inauguração de outro marco de Brasília, em 1986 – o Panteão da Pátria –, que Marianne abraça a missão – nada simples – de vestir de vitrais a catedral monocromática.

OSCAR TORCEU O NARIZ

A construção da catedral se arrastou de 1958 a 1970. O vitral colorido de Marianne Peretti deu nova vida ao templo apenas no final da década 1980 –projeto de 1986; conclusão em 1989. A primeira luta da artista foi convencer a equipe que os arcos, por fora, ficariam mais bonitos se pintados de branco – Oscar torceu o nariz. Mas, cedeu. O arquiteto gostou tanto do resultado que decidiu pintar de branco por dentro também. Outra batalha foi conseguir o consentimento da turma para tirar o vidro marrom que havia originalmente. Mais uma vitória.

Para riscar os vitrais coloridos, a artista precisou encontrar um lugar grande o suficiente para fazê-lo em tamanho real. São 16 peças de 30 metros de altura e 10 de base. Encontrou o chão do ginásio Nelson Nilson – e se debruçou por horas (que a própria perdeu as contas), desenhando à mão, sobre hexágonos que receberiam os nacos do vitral. A cada parte finalizada do desenho, Marianne calculou ter perdido até 4 kg, tamanho o esforço – que não passou desapercebido pelos grandes nomes da época, como demonstra carta de Lucio Costa.

Stéphane Charpentier

A obra-prima da artista: 2.240 metros quadrados da cobertura da Catedral de Brasília

“Tive afinal o prazer, depois de tanto tempo, de conhecer pessoalmente a artista que soube tão bem “dar à luz” o interior da Catedral de Brasília, problema difícil de que somente uma alma com a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver. Em nome da cidade, o inventor dela agradece a você.”

Oscar Niemeyer também não deixou por menos: “Marianne Peretti é uma artista de excepcional talento. Os vitrais maravilhosos que criou para a Catedral de Brasília são comparáveis, pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da Renascença. Sua preocupação invariável de inventar coisas novas, influir com seu trabalho no campo das artes plásticas.”

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PATINAÇÃO E SORVETES

A última visita que Marianne fez à capital federal aconteceu em dezembro do ano passado, para celebrar seus 94 anos na casa dos amigos arquitetos Nilo e Aurora Aragão. “Eles acompanharam as obras durante muitos anos”, conta a filha Isabella, com quem Marianne conversava em francês. “Contemplando os vitrais da Catedral, minha mãe exclamou: ‘Este lugar está cheio de espiritualidade.’”

Getty Images

Vitral de 340 metros quadrados do Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves (na praça dos Três Poderes), de 1987.

Com exclusividade para a Forbes, Isabella recorda que teve uma infância diferente da de outras crianças. “Ser filha de artista é particular. Você entende muito jovem que eles têm outra sensibilidade. Me lembro que, em casa, eu não tinha o direito de fazer barulho enquanto ela pintava no ateliê. A porta ficava fechada.” Aos fins de semana, a regra era outra. “Aos domingos, a gente saía para patinar e tomar sorvetes. Minha mãe me levava à ópera e ao teatro desde muito cedo. Nas férias, andávamos a cavalo.” Como herança, Isabella recebeu o gosto de desenhar. “Acho que arte é importantíssima. Embeleza a vida, nos permite escapar do cotidiano.”

“Marianne é uma das poucas brasileiras que trabalha com sensibilidade e profissionalismo a questão dos vitrais e das transparências”, resume o curador e crítico de arte Marcus Lontra. “Ela faz parte de um grupo de artistas que entende a arte como um instrumento de integração arquitetônica; algo lírico e poético, de profundo diálogo com a arquitetura de Niemeyer; ela traz a questão decorativa, no sentido positivo; faz uma espécie de Matisse na obra do Oscar. Se Athos Bulcão (1918-2008) organiza, simplifica e geometriza, Marianne cria movimentos sinuosos, uma atmosfera barroca, um espetáculo.”

Marcus sublinha a experiência de entrar na Catedral de Brasília: “Aqueles anjos (de Alfredo Ceschiatti; 1918-1989), sob um céu extraordinariamente poético da Marianne, criam uma sensação inacreditável.” Quem conhece, sabe. Quem não conhece, já está preparado.

* Reportagem publicada na edição 97, lançada em maio de 2022

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