Esqueci meu celular no táxi.
Tenho certeza de que você também já esqueceu. Talvez não no táxi, mas em qualquer outro lugar. E que naquele minuto em que você se deu conta sua vida passou diante dos seus olhos. Como se com aquele aparelho tivesse ido junto toda a sua vida.
Cheguei no consultório do médico, mas ele não. Metade de mim ficou para trás. Como avisar alguém? Eu sei mesmo o telefone de alguém? Existe vida sem celular? Logo eu, que me considerava tão analógica, me vi ali, despida. Onde coloco as mãos? O que faço enquanto aguardo nessa – infinita – espera? Nem revista Caras antiga existe por aqui mais. Quem será minha companhia? Eu mesma? Olho em volta e cada um se encontra perdido em seu universo particular, entretidos com seu próprio telefone. Não julgo, apenas observo, afinal, hipócrita que não sou, sei bem o que eu estaria fazendo caso ele estivesse ali.
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Entro na consulta, até sei meu login e senha do laboratório, mas por segurança enviam um SMS para que eu confirme aquele login. Como pegar o SMS em um telefone que nem sei onde se encontra? Esperei meses por essa consulta e agora aqui estou eu, frustrada, sem exames em mãos.
Foi um fato curto, terminou tudo bem. Celular de volta, vida nos trilhos. Mas confesso que ficou ali um questionamento: Eu o possuo ou deixei ele me possuir? Ele existe para a minha comodidade ou me tornei dependente?
Percebo que nos últimos tempos a tecnologia tem me roubado de mim. Me rouba leituras preciosas interrompidas por avisos, me rouba estar por inteiro quando estou com meus filhos, me rouba a atenção enquanto converso com meus pais ou meu marido. Constantemente pergunto “desculpa, o que você falou mesmo?”. Me rouba o prazer de apreciar o café da manha, que sempre foi meu momento sagrado, enquanto tento otimizar meu tempo respondendo e-mails.
Mesmo quando estou entediada, percebo que deslizo o dedo automaticamente pelo feed do Instagram, quando na verdade eu não vejo nada. Vão passando pessoas que nem sei quem são, vidas editadas. Não vejo muita coisa além de um vazio infinito, mas aquilo me distrai da lista imensa de pendências que preciso resolver. Da vida real aqui fora.
Noto minha incapacidade de lidar com o tédio, e aquele mundo que habita no aparelho na minha mão parece preencher um espaço. Na verdade ele não apenas não preenche, como escancara minha incapacidade de lidar com ele. De lidar com minha própria companhia.
Precisamos ser entretidos o tempo inteiro, e o pior: pensamos que nossos filhos também. Meu lema na maternidade sempre foi o equilíbrio. Nada muito radical, tudo na medida. E isso sempre se aplicou a tudo, inclusive ao acesso deles às telas. Sempre morri de preguiça de toda a militância e radicalismo que envolvem esse assunto. A tecnologia veio para ficar, e sem se importar com nossa opinião a respeito, cada dia estará mais inserida na nossa rotina. O metaverso e todas as mudanças que o acompanham estão aí para provar. Nunca pretendi criar meus filhos alheios a alguma coisa, numa bolha intocável.
No nosso período de adaptação em Nova York, me vi muitas vezes recorrendo a telas para conseguir executar tarefas simples do dia a dia. Sempre as usei como um recurso emergencial. Queria tomar meu café da manhã sem pedir para alguém não subir na prateleira, então liberava uma “Patrulha Canina” ali. Briga no carro no caminho da escola, “Peppa Pig, chega aqui e me ajuda um pouquinho”. Queria tomar banho, então cedia mais uma vez, e lá vinha “Sam, o Bombeiro” me salvar.
De repente, a soma de todos aqueles 5 ou 10 minutinhos passou a ocupar um espaço enorme nos nossos dias. As conversas a caminho da escola foram ficando cada vez mais raras e foram substituídas por insistência para assistir desenho seguida de irritação quando a solicitação não era atendida. Na hora de dormir, que conversamos tanto, falamos sobre o dia, sobre nossos planos, percebi que passaram a perder o interesse e pediam para assistir “um pouquinho” de desenho. E choro. Choro frequente a cada vez que eu negava ou quando avisava que o tempo havia terminado.
Percebi que a tecnologia que me roubava tanto passou a roubar também minhas melhores companhias e conversas diárias. E assim dei um passo atrás. A linha é tênue e é bem fácil perder o controle. Fui radical, passei alguns dias ouvindo protestos, mas logo tudo voltou ao normal e meus pequenos curiosos voltaram a se interessar pelo mundo real. Tiramos muitas vezes dos filhos a oportunidade de lidar com o tédio, o espaço para criar brincadeiras, a apreciar a própria companhia.
Foi assim que percebi como o tempo é nosso recurso mais valioso e como dificilmente nos damos conta de como o desperdiçamos sem perceber.
Um dia maratonando uma série nos leva o que temos de mais precioso: o tempo. Um dia que não voltará.
E eu espero que você, lendo isso, tire um dia para estar com as pessoas importantes para você. Não fisicamente, mas por inteiro, de corpo e alma. Que saiba usar a tecnologia a seu favor e usufruir de toda a facilidade que ela nos traz, mas nunca permita que ela te possua.
Paula Drumond Setubal é advogada, mãe de gêmeos e produtora de conteúdo.
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