Conversar nos últimos meses com Flávia Carvalho, diretora de relações com investidores da Viveo (VVEO3), significa, inevitavelmente, escutar vez ou outra o choro de um neném ao fundo. Sua filha acaba de completar seis meses e, como não poderia ser diferente, impõe sua presença. O que não quer dizer que não seja possível falar de trabalho com Flávia – pelo contrário.
Para a executiva que foi contratada grávida e tocou o sino da B3 na estreia da Viveo na Bolsa com um barrigão de nove meses, a maternidade não se tornou um impeditivo na carreira.
“Estar grávida não me fez entregar menos. Existe uma associação da maternidade à baixa performance, mas em nenhum momento meus colegas precisaram saber que eu estava grávida”, diz ela. Como a empresa adotou integralmente o trabalho remoto, os colegas só a conheceram no dia do IPO (oferta pública inicial, na sigla em inglês) e se surpreenderam ao descobrir que a chefe esperava um bebê.
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A gravidez também tinha sido uma surpresa para Flávia, que descobriu que esperava sua segunda filha bem no meio do processo seletivo para o cargo que ocupa hoje.
“Assim que descobri, liguei para o headhunter para para agradecer e encerrar as entrevistas. Em menos de uma hora, ele me retornou dizendo que não tinha problema e que o CEO havia dito que eu poderia ser contratada grávida”, conta ela.
Essa não é a realidade de muitas mulheres, nem de muitas empresas. Uma pesquisa da FGV mostra que, nos 47 meses que sucedem o fim da licença maternidade, quase 50% das mulheres ficam fora do mercado de trabalho.
O nascimento da primeira filha, hoje com quatro anos, foi uma experiência bastante diferente: além de já estar na empresa para a qual trabalhava quando engravidou (era superintendente de finanças na CPFL Energia, de energia renovável), a gravidez foi completamente planejada.
Ser mãe nem sempre esteve nos planos da especialista em finanças, mas ter um cargo de alto escalão, sim. “Não sou uma pessoa romântica e idealizadora, que imaginava casar e ter uma família. Mas a área financeira sempre fez meus olhos brilharem”.
A pandemia, com todos os seus pesares, trouxe o benefício do trabalho remoto, que facilitou a vida da executiva. Poder trabalhar em casa permite que ela tenha mais tempo perto da recém-nascida, algo que era inviável quando a mais velha nasceu.
Ainda é um desafio, mas muito mais possível de conciliar a maternidade com o trabalho, ela diz.
“Não gosto de monotonia”
A Flávia de 22 anos já tinha ambição de fazer carreira no mercado financeiro e se tornar diretora. Depois de se formar em Relações Públicas pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), ela começou a se afastar aos poucos da área de comunicação quando foi promovida de estagiária de recursos humanos da Suzano Petroquímica a analista de planejamento estratégico, e, mais tarde, a analista de relações com investidores.
A mudança não foi do nada, já que números e contabilidade sempre foram sua praia, conta ela. Quando viajava com os amigos durante a faculdade, em vez de ajudar no volante, ficava responsável por fechar as contas e dividir as despesas entre todos.
A experiência na Suzano serviu para que ela descobrisse sua área. Quando a empresa anunciou que fecharia o capital, Flávia optou por trocar de emprego para seguir atuando com relações com investidores e pousou na Iguatemi S/A em 2008.
“Era um momento de boom de mercado de capitais e das empresas de shoppings”, relembra Flávia. A Iguatemi tinha cinco projetos “greenfield”, jargão do mercado para descrever iniciativas que começam do zero, em contraste com aquisições ou joint-ventures. Ou seja, havia muito trabalho a ser feito para levantar capital, seja na forma de equity ou de emissão de dívida.
Foi nesse período em que trabalhou coordenando relações com investidores que Flávia viveu alguns dos momentos mais marcantes de sua carreira: a primeira operação de M&A (fusões e aquisições) e a primeira oferta de dívida – um projeto emocionante de vários meses, lembra ela.
Impossível, no entanto, não se cansar. O momento era de efervescência do mercado e o preço da emoção era trabalhar às madrugadas e aos fins de semana. Além de precisar de uma pausa, Flávia já começava a pensar em mudar de trabalho.
“Quando contei para minha família e amigos que ia me demitir, ninguém acreditou. Todo mundo achava que eu era tão workaholic que não ia conseguir ficar sem trabalhar”, diz a executiva. Em 2012, decidiu tirar um sabático para viajar pela Europa e pela Ásia, no estilo mochilão, com objetivo de conhecer culturas diferentes.
Ela e o namorado deixaram seus empregos e foram para Londres, no Reino Unido, cidade que serviu como base durante as viagens.
Preocupada com o que recrutadores pensariam quando voltasse de seu sabático, Flávia se matriculou em um curso de gestão de finanças na London School of Business and Finance.
“Achava que iam me julgar por ter ficado na vida calma, mas isso foi o que menos importou. Nas entrevistas de emprego que fiz depois que voltei, ninguém perguntou sobre o curso. Só queriam saber qual era o país mais legal e a melhor experiência da viagem”, conta.
Flávia retornou ao Brasil com uma bagagem que incluía um Oktoberfest na Alemanha, três semanas vivendo de bolacha e tomando banho de balde na Índia, dias de praias paradisíacas na Tailândia e até mesmo tiros na Praça Tahrir, no Cairo, durante a Primavera Árabe no Egito.
“Não gosto de monotonia”, deixa bem claro.
A volta à vida normal começou com o cargo de gerente de relações com investidores na Renova Energia SA, companhia focada em fontes renováveis como parques eólicos, pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e projetos de energia solar.
Flávia conta que se envolveu com sustentabilidade por buscar um propósito para seu trabalho. “Virou meio palavra da moda agora, mas se o seu produto final te dá orgulho, isso tem um peso na carreira.”
Além disso, naquela época, em 2013, o setor de energia renovável estava começando no Brasil, o que apresentava uma oportunidade de fazer muitas coisas novas, afirma ela.
Flávia afirma que a experiência de fazer algo pela primeira vez é sempre mais árdua – o primeiro rating da equipe liderada por ela demorou 8 meses –, mas conta que se sente motivada quando constrói em algo que servirá de referência para o trabalho futuro da empresa.
Depois de acumular mais de sete anos no setor de energia renovável – com passagens pela Renova, CPFL Energia e um período como consultora independente – Flávia decidiu novamente fugir da monotonia e se aventurar em uma área completamente nova.
Em 2020, assumiu o cargo de CFO da BR Sports, empresa de materiais esportivos brasileira que havia acabado de comprar uma série de ativos na Argentina e planejava expandir as operações em um futuro próximo.
Flávia provavelmente ainda estaria lá, não fosse um headhunter que entrou em contato no mesmo ano. A Viveo estava à procura de um diretor de relações com investidores – ou de uma diretora.
Trabalho novo, vida nova
Fundada em 1996, a Viveo tem capital 100% nacional e atua na fabricação e distribuição de materiais e medicamentos – é dona de marcas como Cremer, Topz, Embramed e Salvelox.
O novo cargo vinha com um grande desafio: a abertura de capital da companhia, planejada para 2021.
Foi exatamente isso que atraiu a executiva, que conta que essa é a parte do trabalho que mais gosta de fazer: conduzir análises, olhar números, entender contextos. (O que menos gosta são os processos burocráticos). Fora que, no meio da pandemia de Covid-19, o que seria mais desafiador e estimulante que mergulhar na área da saúde?
Flávia afirma ter ficado espantada com a disposição da empresa de fazer um compromisso a longo prazo com ela, gravidez e tudo, e se lembrou de quando estava do outro lado – entrevistando mulheres acima dos 35 anos e casadas há mais de 2 anos.
Hoje, ela agradece por ter escolhido suas funcionárias independentemente da chance de engravidarem. “Eu entendo que esse temor passe na cabeça de recrutadores, porque já passou pela minha em outro momento da vida”, pondera.
Flávia também afirma que não trocaria a maternidade por nada, apesar das dificuldades para conciliá-la com uma carreira na área de relações de investidores, que envolve muitas viagens e tem picos de trabalho muito intensos.
“A vida se adapta. Valorizo cada vez mais as mães que trabalham, porque ficamos mais eficientes”, diz.
Antes, ela não tinha pressa para ir embora do escritório e podia trabalhar mais horas, mas hoje em dia precisa encerrar o trabalho no máximo às 19h, já que suas noites seguem a rotina das necessidades das crianças. “Não entrego menos. Aprendi a ficar mais focada, mais diligente, porque quero terminar a jornada mais cedo.”
Depois de quatro meses de licença-maternidade, ela está de volta ao trabalho. Para a executiva, a maior dificuldade ainda é conciliar a falta de flexibilidade e de tempo, já que muitas questões importantes acabam precisando ser resolvidas depois do fim do expediente.
Apesar disso, Flávia diz que ter filhos a ajudou a buscar mais equilíbrio no cotidiano. “A maternidade me trouxe um senso de urgência e [uma busca por mais] eficiência, porque sou mais do que a Flávia executiva.”
Ela também conta que, depois de quatro meses de licença, ela já estava ávida para pensar em outras coisas que não fossem amamentação e fraldas. Trabalhar, neste momento, é um descanso para a cabeça, diz.
A diretora da Viveo afirma que sempre navegou pelo mercado de trabalho independentemente de seu sexo, e tenta se afastar de qualquer noção externa de vitimismo. Ela reconhece, no entanto, que teve que provar seu valor em mais de uma ocasião, principalmente em ambientes em que era a única mulher.
Mulheres em cargos de liderança no mercado financeiro são muito raras. O levantamento Mulheres em Ação, feito pela B3 no fim do ano passado, mostra que 61% das mais de 400 empresas analisadas não tinham nenhuma mulher em cargos de diretoria; 45% também não tinham presenças femininas no conselho de administração.
Para Flávia, o problema pode começar a ser abordado a partir de políticas públicas, já que um dos fatores que joga contra as mulheres no mercado de trabalho é a licença-maternidade – um benefício compatível e compulsório aos pais poderia incentivar a paridade.
“Enquanto isso não acontecer, vai continuar sendo uma surpresa ser contratada grávida”, diz.
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