Heather Morgan e seu marido, Ilya “Dutch” Lichtenstein, pareciam levar uma vida de sucesso como empreendedores de tecnologia e palestrantes. Lichtenstein investiu em startups ao lado de pesos pesados como Marc Benioff e lançou sua própria empresa, apoiada por Mark Cuban. Morgan se autodenominava uma grande pensadora, postava artigos online sobre liderança feminina e tinha até um alter ego rapper no YouTube chamada Razzlekhan, que falava sobre sucesso e dinheiro.
Mas eles tinham um segredo, de acordo com investigadores do Receita Federal dos EUA. Morgan e seu marido foram presos em Nova York na terça-feira (8) e acusados de tentar lavar US$ 3,6 bilhões em bitcoin roubados da exchange Bitfinex por hackers há seis anos.
Se condenados pelas acusações contra eles, cada um pode cumprir pena de até 25 anos de prisão. Documentos judiciais revelados esta semana detalham um esquema elaborado para lavar e ocultar as origens dos bitcoins roubados. Lichtenstein e Morgan não são acusados de realizar o ataque hacker que roubou os bitcoins.
A Forbes descobriu que, enquanto a dupla supostamente usava uma carteira digital para lavar a criptomoeda, eles se apresentavam publicamente como empreendedores, investiam em empresas juntos e, no caso de Morgan, estabelecendo-se como uma personalidade de mídia social.
Desde que se conheceram há cerca de uma década, os dois trabalharam duro para se firmar nos círculos de tecnologia do Vale do Silício e de Nova York.
Lichtenstein passou por uma série de empreendimentos fracassados, incluindo a administração de um site de fãs de Ron Paul e a criação de um negócio de suplementos para estimular o cérebro antes de co-fundar a MixRank, agora uma empresa de vendas e marketing. Lichtenstein deixou o MixRank abruptamente em 2016, mesmo ano em que a Bitfinex foi hackeada.
Durante esse tempo, Morgan se apresentou como uma especialista em “e-mail frio” – comunicações não solicitadas – e aproveitou isso para dar palestras e participar como convidada em conferências de vendas.
“Ela era confiante e assertiva, mas nunca de uma maneira que levantasse suspeitas”, diz Travis Lybbert, professor de economia da Universidade da Califórnia, Davis, que contratou Morgan como assistente de pesquisa em 2011. “Ela era uma jovem muito determinada, profissional, que corria atrás de oportunidades e as criava.”
Pessoas que conheciam o casal disseram que ficaram chocadas com as prisões. Lybbert, em entrevista por telefone à Forbes, disse que Morgan foi um estudante promissor cuja compreensão do Oriente Médio era impressionante. Ela “ganhou um lugar” como coautora do capítulo do livro acadêmico que eles escreveram juntos: “Lições da Primavera Árabe: Segurança Alimentar e Estabilidade no Oriente Médio e Norte da África”.
O professor disse que havia dado uma palestra em uma das turmas de Morgan quando ela era aluna da UC Davis, e ela o abordou mais tarde, após sua formatura, em busca de oportunidades de pesquisa que pudessem auxiliá-la “a fazer uma pós-graduação em economia, especialmente em economia do desenvolvimento”.
“Ela estava sempre planejando o próximo passo e tinha grandes aspirações para o que queria fazer profissionalmente”, diz Lybbert.
Lybbert também afirma que enquanto ele e Morgan trabalhavam juntos em 2011 e 2012, Morgan era ambiciosa e ocupada. Depois de se formar na UC Davis, ela viajou para Hong Kong, onde trabalhou como organizadora de eventos, ao mesmo tempo em que cursou uma pós-graduação em economia e iniciou sua própria empresa de consultoria de copywriting, a SalesFolk, disse Lybbert.
De acordo com a página de Morgan no LinkedIn, ela se mudou de Hong Kong para o Cairo, no Egito, onde concluiu um mestrado em economia e desenvolvimento internacional na American University. Morgan então voltou para a Califórnia em 2013 e conseguiu um emprego em uma empresa chamada Tamatem Inc., uma editora de jogos para celular em árabe, que foi incubada no 500 Startups.
Mais ou menos na mesma época, Morgan lançou o SalesFolk. Cópias de arquivo de seu site de junho de 2013 a descrevem como uma “ninja analítica”, uma “autora publicada” e com sete anos de experiência em copywriting.
Parece que ela cruzou caminhos com Lichtenstein nessa época. Ele aparece como autor de um depoimento na parte inferior do site da Salesfolk. Ele avaliou os serviços de Morgan como “brilhante”, a descreveu como “intensa, brilhante e focada”, e afirmou que “uma única hora de brainstorming com Heather traz resultados imediatos”.
Em 2014, Morgan começou a escrever em um blog próprio, o econgoat.com. Em um post em 14 de abril de 2014, ela escreveu: “Embora meu amor ao risco possa ter me trazido mais caos do que a maioria das pessoas conseguiria suportar, misturado com alguns fracassos, também me levou às minhas maiores vitórias”. Alguns meses depois, Morgan entrevistou Lichtenstein para seu canal no YouTube, perguntando a ele sobre sua empresa, a MixRank, em um vídeo intitulado “Obtenha seus primeiros US$ 1 milhão em vendas corporativas com zero gastos de marketing”.
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A essa altura, Morgan estava sendo ganhando fama. Em agosto de 2015, ela foi entrevistada por uma empresa de software de gerenciamento de vendas chamada Ambition, que a descreveu como alguém que estava “reescrevendo o manual de divulgação por e-mail frio para empresas de SaaS [de software como serviço] em todo o mundo”.
Brian Trautschold, agora COO da Ambition, que fez a entrevista com Morgan, expressou choque por ela ter sido acusada de um crime federal. É “loucura”, disse ele à Forbes por telefone. “Ela estava falando em conferências SaaS e não havia nenhum indício de que ela não estava focada em consultoria de copywriting… É um choque, mais de sete anos depois, ver o outro lado da história aparecer.”
Alguns meses antes do cyberataque na Bitfinex, ocorrido em agosto de 2016, Morgan tornou-se colunista freelance na revista Inc., que a descreveu como alguém que passou de “dormir de favor na casa de amigos a criar uma empresa de sete dígitos de valor de mercado chamada SalesFolk”.
No ano seguinte, ela também se tornou colaboradora da seção ForbesWomen no site da Forbes norte-americana, onde postou artigos sobre temas que vão de música a comida. Em um deles,, Morgan contou que tinha um problema de fala quando criança e sofreu bullying de colegas de escola.
Nesse texto da Forbes de 2019, Morgan citou problemas com que teve com a Justiça. Durante uma viagem de negócios à Ásia, ela recebeu “ameaças legais”, descobriu que seus funcionários estavam “falsificando números” e foi intimidada por amigos de longa data, segundo a autora. A Forbes a removeu como colaboradora em setembro de 2021 durante uma revisão semestral de rotina.
Foi por causa de contratempos profissionais como esses, ela escreveu na Forbes, que Morgan decidiu se tornar uma rapper, adotando o nome Razzlekhan. Em uma postagem no Instagram em janeiro de 2019, Morgan veste uma jaqueta de couro preta e há outra mulher atrás dela. “Algumas pessoas no mundo da tecnologia estão um pouco preocupadas com o meu rap e não têm certeza se eu deveria fazer rap, o mesmo tem acontecido com algumas pessoas do mundo corporativo”, disse ela. “Mas, sabe, eu me lembro de muitas pessoas me dizendo para não correr riscos, não começar uma empresa, não ser uma empreendedora.” Vários vídeos do YouTube de Razzlekhan se tornaram privados ou foram removidos desde a noite de terça-feira (8).
Desde o ataque à Bitfinex em 2016, as redes sociais do casal mostram um estilo de vida extravagante. Há vários registros de uma viagem “jet set” de Morgan do Panamá à Malásia e depois ao México.
No mesmo mês em que o suposto roubo ocorreu, Morgan postou uma foto no Instagram. Ela e Lichtenstein estão sentados em um sofá de cetim azul, rindo. “Eu adoro me meter em confusões com esse cara maluco”, escreveu ela. “Obrigado por sempre me inspirar a ser uma empreendedora melhor!”
Lichtenstein, por sua vez, havia se estabelecido como uma figura menor no mundo dos investimentos em tecnologia de Nova York. Segundo o Departamento de Justiça, ele morava em um apartamento no número 75 de Wall Street, um quarteirão exclusivo onde um apartamento vale ao menos US$ 1 milhão.
Era uma imagem de sucesso que ele vinha construindo há uma década. Depois de se formar em psicologia pela Universidade de Wisconsin-Madison, Lichtenstein procurou empreendedores com ideias semelhantes e foi para o Vale do Silício, onde conheceu outros tecno-libertários, de acordo com sua trilha de sites e empresas agora extintos identificados pela Forbes.
Um de seus sites mais notáveis foi o RonPaulFan.com, que continha um fluxo de notícias e apoio ao ex-candidato à Presidência dos EUA Ron Paul que se tornou um famoso defensor das criptomoedas. De acordo com o banner do site, o endereço era a “fonte nº 1 para todas as notícias de Ron Paul”.
Lichtenstein também se interessou na venda de suplementos nessa época e criou um produto chamado Instant Focus que prometia “turbinar sua produtividade”. Em um posto no Hacker News, em outubro de 2010, ele afirmou que o suplemento o ajudava a “escrever códigos por longas horas e ser mais produtivo”.
Ele também lançou sites de perda de peso, incluindo MyNaturalWeightLossDiet.com, que promovia limpezas de cólon e suplementos de açaí, além dos sites de namoro adultfriendgrinder.com e findgeekgirls.com.
Essas empresas não decolaram e ele obteve mais sucesso como cofundador da MixRank, uma startup de marketing orientada a dados que foi aceita no programa de aceleração Y Combinator em 2011. Na época, Lichtenstein estava tentando se estabelecer como um dos pensadores do Vale do Silício por meio de um blog intitulado Influence Hacks. Em um post, ele escreveu: “A quantidade de dinheiro que você ganha não tem nada a ver com o quanto você trabalha… O que os mercados realmente recompensam é o RISCO”.
Os primeiros apoiadores do MixRank incluem o investidor bilionário Mark Cuban e o fundo de capital de risco 500 Startups, de acordo com o Pitchbook, mas ambos venderam suas participações para um comprador não revelado em algum momento entre 2012 e 2015. O outro fundador do MixRank, Scott Milliken, não respondeu às perguntas da reportagem. Em um e-mail, Cuban disse que “nunca conheceu” Lichtenstein.
Mais tarde, Lichtenstein fundou uma empresa de segurança cibernética baseada em blockchain chamada Endpass e uma empresa de investimentos chamada DemandPath, ao lado de Morgan. Ele também começou a investir em startups. Uma das empresas que recebeu investimentos foi a Routable, onde ele era um investidor anjo ao lado de mais de uma dúzia de pessoas, incluindo bilionários pesos-pesados da Bay Area, como Scott Belsky, o fundador da Box, Aaron Levie, e o fundador e co-CEO da Salesforce, Marc Benioff. Não há indícios de que Lichtenstein conhecia ou se comunicava com os outros investidores.
Em uma postagem no LinkedIn de 2021, Lichtenstein escreveu que estava “orgulhoso por estar entre os primeiros investidores da Routable”. Omri Mor, cofundador e CEO da Routable, respondeu: “Orgulhoso de tê-lo conosco desde o início”. Mor não respondeu aos contatos da Forbes.
Lichtenstein não tem sido tão prolífico nas mídias sociais quanto sua esposa. Na última década, sua conta no Twitter ficou quieta por quase sete anos, de 2013 a 2020. Em janeiro de 2021, ele usou a plataforma para reclamar do que chamou de “#BigTechCensorship”. No mês passado, ele mirou o capitalista de risco Marc Andreessen, satirizando-o por causa de um meme. “Não é louco que os bilionários, que podem fazer qualquer coisa no mundo, escolham priorizar postar memes de segunda categoria no Twitter?”
Contatado por telefone, o pai de Liechtenstein, Yevgeniy Lichtenstein, se recusou a falar sobre a situação de seu filho. “Não quero discutir isso, sinto muito”, disse ele.
Um parecer de 20 páginas escrita por Christopher Janczewski, um agente especial do Receita Federal dos EUA, acusa Morgan e Lichtenstein de transferir os bitcoins roubados “através de milhares de transações para mais de dez contas” em seus próprios nomes e negócios. Uma dessas empresas era a SalesFolk, e empresa de consultoria de Morgan, de acordo com o depoimento.
Em junho de 2019, Morgan supostamente transformou uma conta pessoal que tinha em uma exchange para uma conta corporativa. O objetivo era “receber menos escrutínio sobre suas transações enquanto ela liquidava grandes quantidades de bitcoin”, diz o parecer.
Mas foi o uso de uma conta de armazenamento em nuvem por Lichtenstein que levou à descoberta da suposta trama. O governo descriptografou um arquivo que continha uma lista de 2 mil endereços de criptomoedas, juntamente com as chaves privadas correspondentes. Quase todos eles estavam ligados ao roubo à Bitfinex, de acordo com o Departamento de Justiça, que disse que a criptomoeda também passou por entidades de propriedade de Morgan.
O advogado de Lichtenstein e Morgan, Anirudh Bansal, não respondeu aos pedidos de comentários da Forbes.
Durante uma audiência de detenção na terça-feira perante um juiz federal, Morgan e Lichtenstein foram libertados sob fiança, apesar das objeções dos promotores. A acusação citou o fato de que Morgan supostamente “tentou bloquear seu telefone celular para evitar que ele fosse inspecionado por autoridades” e que a dupla “se envolveu em uma lavagem extraordinariamente complexa” de parte dos bitcoins roubados da Bitfinex. No final, o juiz Beryl Howell ordenou que o casal permanecesse sob custódia.
Em agosto de 2019, Morgan deu uma palestra em Nova York com o tema “Como usar a engenharia social para conseguir o que você quiser”. Quando perguntada por um membro da plateia sobre qual o limite da engenharia social, Morgan respondeu: “Acredito que os fins justificam os meios às vezes”. “Meus objetivos finais não são ruins ou maus. Não estou tentando roubar dinheiro de alguém ou machucar alguém de forma alguma.”
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