Poucos metros (20 ou 30) nos separam de uma onça. O coração está na boca. Melhor nem piscar – vai que ela aparece e some de repente. O sinal que o colar dela emite foi captado pela antena empunhada pelo guia Bruno Sartori, biólogo de 28 anos, paulista de Bauru, que está em pé no Defender sem teto, equilibrando-se para não cair com os solavancos do Land Rover pilotado com valentia por Adalto Souza, de 38 anos de vida, 20 de Caiman, mais conhecido por Shipão. Com um olho, ele encontra espaços improváveis no mato quase fechado para seguirmos em frente; com o outro, Shipão encara o chão ao lado do carro, rastreando pegadas da onça.
Certeza de que vamos ver a onça nesse tour matinal, certo? Não desta vez. A adrenalina vai baixando conforme Bruno explica que o animal mais desejado dos turistas no Pantanal está entocado num matagal mais fechado, do qual não conseguimos nos aproximar, e que agora nos resta voltar ao hotel e aguardar o próximo safári, no fim da tarde.
Não vimos a figurinha principal, mas nosso álbum de lembranças já carrega imagens marcantes de pássaros de todas as cores e formatos, como tuiuiú, colhereiro, falcão-de-coleira, ananaí, jaçanã, jacutinga, gavião-caramujeiro, tapicuru-de-cara-pelada, cabeça-seca…; e animais maiores como jacarés, macacos, veado-campeiro, anta, capivara e um cervo-do-pantanal enorme, com um grande chifre, que dá o ar da graça perto do portão da pousada, como se dissesse: “Amigo, não tenha olhos apenas para a onça. Você está em um lugar de exuberância natural dos mais espetaculares do planeta.” E ele teria toda a razão.
Estamos na melhor hospedagem do Pantanal, em uma fazenda de gado de 1912, assistindo com conforto à explosão da vida selvagem da maior planície alagada da Terra, onde vagam 102 espécies de mamíferos, 177 de répteis, 40 de anfíbios, 264 de peixes e 652 de aves.
São 210 mil quilômetros quadrados (mais que o dobro de Portugal), que alternam períodos de seca e de cheia conforme o pulsar da principal artéria do Pantanal, o rio Paraguai. O Refúgio Ecológico Caiman recebe turistas desde 1987. Está a 40 quilômetros (quase todos de terra) de Miranda, que, por sua vez, está a 218 quilômetros de Campo Grande (MS).
Sua origem remonta à Miranda Estância – de pecuária extensiva de gado, tocada por ingleses no início do século passado, sob domínio da família Klabin desde 1952. Nos anos 1980, as terras foram fatiadas e sorteadas. O ativista ambiental e empresário Roberto Klabin ficou o melhor pedaço: 53 mil hectares (um terço da cidade de São Paulo), incluindo a sede da fazenda. Nascia ali a realização do sonho de preservar a biodiversidade das paisagens que o encantaram na infância, abrindo as porteiras para o turismo. Em 2004, mais um passo rumo à conservação: a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural Dona Aracy, com 5,6 mil hectares isolados do gado, área escolhida por pesquisadores da USP.
As maravilhas da fauna e flora locais, bem como as experiências ligadas à cultura pantaneira, fizeram fama no exterior. Até 2019, os estrangeiros respondiam por 75% do movimento. Os hóspedes se dividiam entre duas minipousadas – Cordilheira e Baiazinha – distantes 22 quilômetros uma da outra.
No dia 31 de maio de 2021, foi inaugurada uma nova fase do Refúgio: a Casa Caiman. São 18 apartamentos instalados na área onde funcionava a sede da fazenda – as duas minipousadas viraram villas privativas de cinco e seis suítes, com diárias de R$ 28.750.
“Depois do grande incêndio de 2019 [que atingiu 60% da fazenda], comecei a mexer na estrutura: ampliei os quartos, fiz a união das duas casas da sede com uma nova piscina e um lugar único para as refeições. Serviço e conforto foram para um outro nível”, conta Roberto Klabin, membro do conselho de administração da Klabin e vice-presidente do SOS Mata Atlântica. “O Pantanal é o próximo destino de observação de fauna no mundo nos quesitos de diversidade e proximidade dos bichos. Venho para essa fazenda desde os 10 anos, passei décadas até ver a primeira onça. Agora a gente vê todo dia.”
60 onças soltas
O que rege a rotina no Refúgio Ecológico Caiman são os dois safáris em carros abertos, no alvorecer e no entardecer. “Gostamos muito de fazer safári na África do Sul em 2019. O que mais nos atraiu para vir para cá foi a chance de ver uma onça de perto”, conta Leandro Marinho, 35 anos, economista do mercado financeiro, ao lado de Aline Barroso, 30. “Não sabia que era possível fazer safári assim, no Brasil, tão perto de casa, a uma hora e meia de voo”, diz Aline.
Além dos passeios oferecidos por Caiman, há safáris fotográficos organizados por um projeto que está na fazenda desde 2010: o Onçafari. Idealizado por Mario Haberfeld, o Onçafari nasceu nos moldes dos safáris de observação de leopardos na Reserva Sabi Sand (África do Sul), onde os animais foram habituados à presença humana dentro de veículos.
No Refúgio Ecológico, em 2012, foram 35 avistamentos; no ano seguinte, 138; em 2019 (até setembro), o número saltou para 905. Em 2019, 98% dos turistas que estiveram em Caiman se depararam com uma onça-pintada.
Com cerca de 60 câmeras espalhadas na mata, os biólogos identificam os animais e aprendem seus hábitos. Nos últimos dez anos, foram registradas 200 onças no Refúgio. Calcula-se que existam hoje entre 50 e 60 zanzando pela fazenda, nove delas (oito pintadas e uma parda) usando colar com GPS.
A volta da Fera
Bruno e Shipão, a dupla do Onçafari que me levou ao passeio matinal, reaparece para o tour no sol poente – e, se a expectativa de ver a vedete dos Big Five do Pantanal (tamanduá-bandeira, capivara, anta, cervo-do-pantanal e onça-pintada) de manhã era grande, imagine agora. Antes das 16h, eles são notificados de um avistamento – lá vamos nós!
Ao chegarmos, nem bem fico emocionado com o desfilar de uma onça, e aparece uma segunda. Os bichos enormes e coloridos estão à vontade com a presença de dois carros. O canto dos pássaros ajuda a acordar da hipnose causada pelo vaivém dos gatões. Para percebermos que o céu apresenta um degradê entre o laranja e o rosa, é preciso que um casal de araras-azuis passe berrando em frente à gema do sol. O conjunto da obra leva lágrimas para dentro da máscara.
Antes de ligar a Defender para nos reposicionarmos no avistamento, Shipão tosse. É um combinado com as onças: elas já sabem que, depois do cof-cof do piloto, vem o barulho do motor, e não se assustam. O sol já se foi e quem chama atenção agora é uma grande acauã que passa voando com uma cobra no bico. As duas onças emparelham, dão as costas ao público e saem andando lentamente mata adentro como ao final de um espetáculo. Emocionante.
A onça que vi inicialmente é histórica na região. Chama-se Fera: a primeira onça a ser reintroduzida na vida selvagem, em um trabalho inédito conduzido pela coordenadora geral do Onçafari, Lilian Rampim, em Caiman. A saga começou em Corumbá (MS) em 2015. A mãe de Fera apareceu em uma árvore e morreu durante a captura. Sobraram dois filhotes, uma delas, a Fera. Criaram, então, dentro de Caiman, uma área cercada de um hectare onde as oncinhas foram alimentadas com presas vivas sem contato com humanos. Após um ano, elas foram soltas e, como se vê, vingaram. Fera teve três filhos: Céu (macho), Ferinha e Turi; e já é avó de Isa.
As araras e o vaqueiro
No dia seguinte, hora de sacolejar (feliz da vida) na caçamba de uma Toyota para acompanhar os técnicos do Instituto Arara Azul. Fruto da dedicação da bióloga Neiva Guedes, de 58 anos – que, em 1989, encantou-se com 30 araras-azuis em uma árvore e decidiu dedicar sua vida a elas –, o Arara Azul conseguiu, em 2014, retirar a espécie da lista daquelas em risco de extinção.
Para salvar a espécie, Neiva atacou a caça ilegal e criou técnicas para instalação de ninhos artificiais na natureza, uma vez que as árvores usadas para ninhos estão minguando com o desmatamento. Desde o início do projeto, em 1990, 888 ninhos já foram cadastrados (473 naturais e 415 artificiais). Anualmente, são monitorados cerca de 300 ninhos – no ano passado, foram 283 ninhos em 25 fazendas.
Visitamos três ninhos em árvores como o manduvi, com tronco oco e aberturas a cerca de 8 metros do solo. Os biólogos sobem com técnicas de rapel, medem a temperatura da entrada do ninho e da “cama” e examinam ovos e bebês – no primeiro, lá estavam dois filhotes, um de 12 e outro de 14 dias; no segundo, tudo certo com os dois ovos; no terceiro ninho, além dos dois filhotes, com sete e nove dias, a equipe checa a câmera, com sensor de movimento, instalada em frente ao ninho: 970 vídeos feitos na primeira quinzena de setembro.
Uma das principais fontes do Instituto Arara Azul para a descoberta de novos ninhos é o vaqueiro mais antigo em ação na fazenda. José Carlos Creto, de 72 anos, o Zé do Brejo. “Cheguei em 1966. O trabalho era mais pesado. Agora não tenho mais a ligeirice, mas gosto de fazer o que precisa.” Zé pensa em trabalhar mais um ou dois anos.
“Quando for para a cidade, vou sentir saudade da Bobona [apelido da Fera], ela passa aqui todo dia de manhã.” Em uma cena que parece gravação da novela “Pantanal”, 696 cabeças de boi atravessam a ponte centenária de Caiman – Zé fecha o time de peões da comitiva. Com tanto tempo na lida do gado, diz já ter aprendido algumas coisas. “Boi é igual gente. Tem que saber mexer. Se não quer vir por aqui, então vamos por lá. O importante é ter paciência. Cada boi é diferente do outro.”
Cavalgar é mais um destaque da programação de Caiman. E não pense duas vezes para programar um pôr do sol da perspectiva da canoa canadense. À noite, dois jantares outdoor para lá de especiais: churrasco pantaneiro (com violeiro e sanfoneiro) e outro servido em uma clareira com 105 lamparinas penduradas em árvores, ao final de um caminho de tochas, logo após a contemplação do céu com uma luneta que possibilitou ver Júpiter com quatro luas alinhadas e uma palestra sobre as constelações, fazendo paralelos entre as mitologias grega e tupi-guarani.
Na manhã do quinto e último dia, que tal madrugar de novo e embarcar em mais um safári para buscar o tamanduá-bandeira? Na falta de um, aparecem quatro, muito sossegados, um deles com o filhote nas costas. Duas horas mais tarde, em outro ponto da fazenda, o guia Victor Lucas de Paula, de 29 anos, paranaense de Rolândia, observa um veado correndo perto de uma carcaça de vaca.
Nota vários urubus pousados em galhos próximos ao bicho morto. Resolve jogar âncora ali – os urubus estão esperando “alguém” se servir antes deles. Vamos esperar também. Em 20 minutos, aparece a Ferinha para o café da manhã – e para protagonizar cenas de um documentário da National Geographic ao vivo. O avistamento dura 45 minutos. De volta ao hotel, quem nos recebe faz a clássica pergunta do pós-safári: “Deu onça?”
Agradecimentos: Sebrae e visitms.com.br
Reportagem publicada na edição 91, lançada em novembro de 2021.
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