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Quanto pode movimentar no país um mercado regulamentado de cannabis? A cannabis sativa tem sido pauta recorrente no Brasil nas últimas semanas. No domingo (17), terminou em São Paulo a 2ª Expocannabis, evento que explora os usos da cannabis, do medicinal humano e animal à culinária, jardinagem, cosméticos e até roupas de cama, mesa e banho. A planta também ganhou as redes sociais com a liberação do cultivo para fins medicinais, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), na quarta-feira (13), e a aprovação de uma lei em Recife (PE) que incentiva a cadeia produtiva da cannabis medicinal, na terça-feira (29/10).
Nos três casos, um processo fundamental esteve no centro das atenções: como fazer a regulamentação andar. Sem ela, a possibilidade de escalar um mercado que movimenta R$ 1 bilhão por ano fica comprometida, ao contrário de cerca de 50 países no mundo que neste ano são a cabeceira de um mercado da ordem de US$ 647, bilhões, puxado por EUA, Canadá, México, Austrália e Espanha. A regulação com base em leis aprovadas estabelece padrões, supervisiona e fiscaliza, e prevê sanções e flexibilidades. Sem elas, os avanços ocorrem de maneira lenta, arrastando junto a pesquisa sobre variedades adaptadas, manejo sanitário e nutricional da planta.
“O Brasil tem muito potencial nesse mercado. O foco é fazer o desenvolvimento de novos materiais adaptados ao nosso clima e resistente a pragas e doenças, e que sejam mais características do nosso território. Só assim podemos finalmente colocar a planta no campo. Mas, para isso, precisamos cultivar”, diz Daniela Bittencourt, médica veterinária e pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, unidade localizada em Brasília.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária foi a grande responsável por tropicalizar culturas nas últimas décadas, levando o Brasil a ser um dos maiores produtores de soja, milho, cana-de-açúcar, laranja. Para a cannabis, as pesquisas têm sido barradas há anos. Em julho, a Embrapa fez mais um pedido formal à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de autorização para o plantio de cannabis sativa, que ainda está em avaliação. Se aprovado, a Embrapa será autorizada a prosseguir com o plantio. A primeira liberação foi dada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) para fins de pesquisa científica, em 2022.
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Uma folha ainda em branco
Daniela afirma que, pela falta de regulamentação que permita a pesquisa, a planta ainda é um quadro em branco nos processos agronômicos, principalmente em escala. As características da cannabis ainda não são tão precisas no Brasil. “Alguns estudos já falam sobre utilização de sementes de cannabis para alimentação e para a saúde do solo. Mas precisamos ver o impacto disso em nosso país, analisar o potencial de utilização em rotação de culturas, de recuperar áreas degradadas, a produção orgânica, etc”, afirma. “Por exemplo, o cânhamo poderia ser uma commodity, como soja e algodão. Muitas pessoas pensam numa produção pequena, mas o grande produtor e a produção em larga escala também podem fazer parte disso”. O cânhamo é uma variedade industrial da Cannabis sativa, com baixos níveis de composto psicoativo e matéria prima para a indústria têxtil, cosmética, farmacêutica e construção.
A produção regulamentada de cannabis tiraria o país da posição de importador para exportador de insumo, o que, segundo Daniela, poderia reduzir custos e gerar emprego e renda aos produtores. Hoje, as plantações permitidas, como a fazenda Sofia Langenbach, em Paty do Alferes (RJ), da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), ou a Abrace, de Campina Grande (PB), que são as maiores do país, beneficiam 10 mil associados e 40 mil, respectivamente, em pequenas áreas. A Abrace tem cerca de 50 mil plantas. Muito diferente de fazendas nos EUA. A Copperstate Farms, no Arizona, a maior do país, tem 50 variedades diferentes em produção e outras 50 variedades de plantas em desenvolvimento. Ou a família Mendes, brasileiros de Goiás, que fundaram a USA Hemp e hoje fatura US$ 25 milhões por ano, com projeto de investir no Brasil. Não por acaso, no mercado mundial, os EUA devem se manter no topo das inovações e investimento, moldando tendências globais na legalização da cannabis e no desenvolvimento de produtos.
Mas há espaços a serem ocupados. Dados da Kaya Mind, startup brasileira de dados e inteligência de mercado de cannabis, em 2021, mostraram que cerca de quatro anos após a aprovação de um marco regulatório, a planta poderia render US$ 5,3 bilhões (R$ 30,5 bilhões) anuais à economia brasileira e gerar 328 mil novos empregos. No mundo, até 2029, a estimativa da consultoria Statista é que esse mercado movimente no ano US$ 75,1 bilhões.
Daniela Bittencourt, pesquisadora da Embrapa, diz que os avanços nos estudos sobre a cannabis esbarram na regulamentaçãoEm 2023, as aplicações medicinais da cannabis movimentaram cerca de R$ 700 milhões no Brasil, crescimento de 92% ante 2022. O potencial agroindustrial é para a produção de cerca 50 mil itens a partir da planta, além do já conhecido uso medicinal, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann).
Por isso, para Daniela, a regulamentação traz luz sobre os desafios desse mercado, especialmente em relação ao alto teor de Tetrahidrocanabinol (THC), composto psicoativo. “Para esse tipo de cannabis, o ideal seria que a gente tivesse uma lista de cultivares que fossem permitidas e aqueles produtores que tivessem intenção de fazer a produção desse material passariam por um registro específico ou um determinado controle, talvez por meio do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), como já é feito com os transgênicos”, diz ela. A lei de biosegurança, que regulamenta os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) no país, da pesquisa à exportação, funcionaria bem para o caso da cannabis.
Pauta cannabis avança no mundo e se arrasta no Brasil
Há dez anos, o país autorizou pela primeira vez a importação de um medicamento à base de cannabis. No ano seguinte, em 2014, a Anvisa deu um passo importante ao retirar o canabidiol da lista de substâncias proibidas, regulamentando o seu uso para fins medicinais.
Outro marco importante veio em 2019, quando a agência autorizou a venda de medicamentos em farmácias. Mas segue estacionado há três anos o projeto de lei 399/15 que permite o cultivo da cannabis para fins medicinais e industriais, levado a Câmara dos Deputados em 2021, . Por isso o passo importante dado na quinta-feira (13), quando o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) autorizou o cultivo para fins medicinais da planta com baixo teor de substância psicoativa. Agora, a Anvisa é obrigada a regulamentar em seis meses. Para comparação, nos EUA, a Califórnia regulamentou o uso medicina em 1966, seguida nos 10 anos seguintes por mais 11 estados.
Em 2012, os estados do Colorado e Washington regulamentaram o uso recreacional para maiores de 21 anos, com leis similares ao uso do álcool e com taxações na produção e comércio. Segundo dados da Conferência Nacional de Legislaturas Estaduais, 38 estados permitem o uso medicinal e 20 também liberaram o uso adulto, e quase 78% dos norte-americanos têm acesso a algum tipo de cannabis legalizada. Em maio de 2024, o país deu mais um passo à flexibilização com a reclassificação da planta como uma substância de menor risco, na categoria 3.
Aqui perto, no Uruguai e Argentina, regulamentar é assunto passado. No Uruguai, primeiro país a aprovar a produção, comércio e venda da cannabis sativa em 2013, o que já se discute é a atualização das regras do mercado legal da planta. Esse foi justamente tema de um dos painéis da Expocannabis. Na Argentina, em 2017 foi autorizado o uso para fins terapêuticos, com um marco regulatório no qual somente os pacientes do Cadastro do Programa Nacional de Cannabis (Reprocann) podem cultivar e transportar cannabis. O uso recreativo segue ilegal.
No Brasil, um passo a mais para a cannabis
A mais recente decisão nesse sentido foi a tomada pela capital pernambucana, Recife, que aprovou o cultivo para fins medicinais e sua distribuição no Sistema Único de Saúde (SUS). O Projeto de Lei (PL) foi da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB), que está entre os 430 mil pacientes brasileiros — dados da Anvisa referente à 2023 — autorizados a importar e utilizar o óleo de canabidiol para o tratamento de doenças.
“Tenho artrose e hepatite autoimune desde jovem. A partir de uma experiência pessoal comecei a pesquisar, do ponto de vista político, a necessidade do acesso ao óleo da cannabis para todos, porque a medicação importada vendida na farmácia tem preço proibitivo”, diz ela.
O projeto que incentiva o plantio da cannabis pode gerar renda para o município. “Atualmente, a escala de plantio em Recife é pequena e se concentra nas associações autorizadas pela lei estadual. Por isso, precisamos da liberação para que esse plantio se torne um grande negócio”.
Em 2022, a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco já havia aprovado uma lei que autorizava o cultivo e o processamento da cannabis sativa para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais, por associações de pacientes, nos casos autorizados pela Anvisa. Mas nada de regulamentação.
A expectativa de Cida Pedrosa é que a adesão ao projeto tenha impacto suficiente para que representantes do agronegócio queiram fazer parte das discussões, especialmente sobre o plantio. “Quando tivermos o consenso do potencial econômico da cannabis, inclusive o agronegócio, com os grandes produtores de soja, cacau, cana, teremos uma explosão de plantios e a possibilidade de ganhar muito dinheiro”.
As especificidades do plantio, segundo a vereadora, ainda terão acréscimos antes de ser aprovado pelo prefeito da capital. “Recife é uma cidade que não tem grandes espaços livres de plantio aberto e os plantios atuais são feitos em estufas. Por isso, vamos levar a pauta para o estado, onde o plantio já é autorizado, e a partir daí teremos as definições sobre áreas, zoneamento agrícola, etc”. O projeto ainda deve passar pelo prefeito João Campos (PSB) e, posteriormente, pela governadora do estado, Raquel Lyra (PSDB), o que deve levar cerca de seis meses para ser regulamentado.
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