“Ninguém vai ao supermercado comprar um quilo de carbono”, diz Daniel Barcelos Vargas, 45 anos, professor de direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), no Rio de Janeiro, sobre a necessidade de investir em métricas de carbono e construir um mercado palpável. Porque são muitas as incertezas sobre esse segmento da nova economia que avançou no mundo e o Brasil enfrenta desafios na sua estruturação.
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Em entrevista à Forbes Agro, Vargas, que é doutor pela Universidade de Harvard e que tem se tornado uma voz ativa no debate ambiental, fala sobre as competências do país em contribuir de maneira “original” nesta tarefa, segundo ele.
O Brasil responde por 2,4% das emissões globais de GEEs (gases de efeito estufa) e produz, em média, 2,2 toneladas de carbono per capita, muito pouco perto da China, que responde por 30% das emissões. Então, por que o Brasil é alvo? Vargas fala também dos avanços regulatórios, da capacidade de estimar a quantidade de carbono produzida ou retirada da atmosfera e do financiamento climático, que entrou na pauta global, definitivamente, a partir de 2021, com COP26 (Conferência do Clima), realizada em Glasgow, na Escócia. Confira a entrevista a seguir:
Forbes: Qual é a maneira mais didática de explicar a alguém para que serve a metrificação do carbono?
Daniel Vargas: Uma maneira simples é comparar com um mercado tradicional, onde as características dos bens podem ser facilmente apreendidas pelos nossos sentidos. Mas o carbono é um bem invisível e mais difícil de ser qualificado ou percebido. Porque ninguém vai ao supermercado comprar um quilo de carbono. Então, precisamos de um conjunto de referenciais que nos permita qualificar com rigor o que está sendo comercializado.
Quando alguém vai comprar ou vender um crédito de carbono, a primeira pergunta é: o que é exatamente esse produto? De onde ele vem? Como posso ter a transparência de que aquilo que está sendo vendido verdadeiramente corresponda a um serviço da natureza, ou seja, uma emissão de GEEs (gases de efeito estufa) que não aconteceu, para que esse sistema de trocas tenha credibilidade e funcione? A maneira de fazer passa pela mensuração.
F: Como funciona essa mensuração?
DV: É um processo, uma dinâmica de produção sustentável, de não emissão de gás ou sequestro de gás. Existe uma infraestrutura para garantir que isso aconteça, formada por uma série de arranjos. De um lado, há metodologias criadas cientificamente ou por padrões sociais, que servem como parâmetro para avaliar a atividade econômica e separar quais funcionam conforme alguns critérios.
Há cinco atores que participam desse jogo. O primeiro é o agente que cria as metodologias. O segundo, desenvolvedores de projetos de crédito carbônico, que em geral elaboram a proposta e ajudam a implementá-la para melhorar o sistema produtivo ou de proteção de uma área ameaçada, garantindo lá no final da linha que de fato houve uma redução ou sequestro de emissões.
O terceiro, os auditores ou fiscalizadores. O quarto, as certificadoras. E o quinto, as comercializadoras. Como é um mercado ainda nascente, muitas vezes essas funções são desempenhadas pela mesma instituição, mas esse conjunto tem que estar de pé para que o regime funcione com credibilidade, transparência e integridade.
F: Qual o propósito dessa nova fórmula de economia?
DV: Crédito de carbono é uma atividade de adicionalidade ambiental. Eu produzia de um jeito, agora vou aprimorar minha produção para gerar ganhos ambientais, medindo em números as moléculas que são emitidas ou evitadas. Se tenho uma lavoura, faço a mensuração no início do processo produtivo para ver qual é a linha de base, a minha pegada original e avalio que emite X toneladas.
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Aí faço um projeto para melhorar o sistema, implemento boas práticas e com isso economizo em emissões e impacto ambiental. Depois de um certo tempo, faço uma verificação de como a produção de alimentos aconteceu – para comprovar a adicionalidade, ou seja, o que ganhei com o meu esforço para melhorar a prática produtiva, evitando emissões ou sequestrando carbono. Isso vai caracterizar o saldo ou o crédito que, eventualmente, pode ser comercializado. Em tese, a regra é essa.
F: Quais são as aplicações possíveis do resultado dessas medidas, do ponto de vista do produtor?
DV: É importante ter em mente dois cenários: o prometido e o real. Qual é o prometido? Em um mundo que quer valorizar as práticas produtivas mais sustentáveis, que geram um benefício climático mensurado em carbono, o mercado organizado seria capaz de pagar um prêmio ou adicional por esse serviço prestado pelo produtor.
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No entanto, o mercado de carbono na agropecuária ainda é incipiente. Isso porque o rol de metodologias disponíveis não foi originalmente preparado para remunerar as boas práticas. Estamos num momento em que o debate é justamente se o mercado vai de fato apoiar o produtor que faz bem-feito, criando estímulos e uma remuneração visando a incorporação de práticas sustentáveis.
Já existem algumas iniciativas pontuais que sinalizam esse caminho. Há certificadoras internacionais de prestígio, por exemplo, que abrem brechas para a geração de créditos na agricultura e uso da terra. No entanto, isso ainda está começando a ser trilhado. Mas a promessa é que haverá um mercado que remunere o produtor.
Qual é a realidade? Ela tem limites, mas já há esforços para remunerar o carbono, não somente por um sistema de compensações (offsetting), em que compro crédito para abater emissões, mas também com prêmios sobre o produto final (insetting), que chega ao mercado qualificado com características ímpares, por exemplo a soja de carbono neutro ou a carne com menor pegada de carbono.
Todos os intermediários da cadeia de alimentos, em particular na Europa, estão cada vez mais atentos e interessados em comprar esses produtos. É um mercado que está avançando e ainda não dá pra dizer que é realidade, mas é promissor.
F: Qual é o principal desafio no setor rural para quantificar o carbono produzido nas lavouras?
DV: São três. O primeiro é a ausência de parâmetros de mensuração ajustados às particularidades do solo e dos sistemas produtivos variados do país. Não é que não exista ciência. Há alguns estudos científicos, mas ainda são abstratos. Caso 10 empresas façam mensuração de carbono, teremos 10 resultados diferentes. É preciso padronizar. É um desafio de amadurecimento, qualificação e diversificação das metodologias para dizer, na prática, o que é sustentável e o que não é.
O segundo desafio é a assistência técnica. Carbono é uma prática complexa que exige um sistema de gestão reforçado e uma habilidade de gerar informações e mobilizar números que ainda são um obstáculo para boa parte dos produtores do país. Tem fazendas que, naturalmente, são muito organizadas e têm a sua contabilidade, os seus custos, investimentos, o seu capital. Vamos adicionar a isso um outro elemento, o carbono e serviços ambientais. A maior parte dos produtores ainda enfrenta dificuldades nesse sentido.
O terceiro desafio é o acesso às ferramentas para a realização dessas tarefas. Os serviços de medição de carbono ainda são escassos no Brasil. São poucas empresas e organizações que os prestam, apesar de muita discussão e promessas. Quem sai na frente? Em geral, produtores mais organizados e internacionalizados, talvez mais cobrados ou que tenham senso de oportunidade. Mas a vasta maioria ainda está à margem.
F: Qual o peso do Brasil nos debates globais sobre carbono?
DV: Na produção tropical de alimentos, que é fundamental para ter escala e abastecer um mundo cuja população vai chegar a 10 bilhões de pessoas nas próximas décadas, o Brasil é líder mundial. Tem o agronegócio mais avançado e sustentável do planeta e hoje é um competidor peso-pesado. É o fato do mundo saber disso que também provoca, muitas vezes, desconfianças e reações.
Agora, o agro é um mercado muito diverso, com produtos, formas de produzir e regimes de sustentabilidade diferentes. O grande problema que muitas vezes afeta essa discussão é querer pressupor que o modelo do que é verde e sustentável seja ditado por um ou outro país – que tem solo, clima e formas de produzir diversos.
F: Que é o caso da Europa…
DV: A Europa cultiva o solo seis meses por ano. O Brasil tem duas, ou até três safras. São histórias econômicas e expectativas sociais diferentes. A sustentabilidade e o carbono são elementos que precisam estar ajustados à realidade tropical, no caso do país. Parte dos obstáculos que continuamente aparecem é querer avaliar o que se faz no Brasil com uma lupa importada.
O avanço da capacidade de traduzir o verde em números e em valor passa pela habilidade de aprender a pensar, medir e precificar a produção com dados locais e critérios tropicais, criados a partir da realidade local, não para flexibilizar e fragilizar os compromissos, mas torná-los mais objetivos e robustos.
F: De que forma os métodos de metrificação podem ser padronizados?
DV: Foram estabelecidos padrões de referência, que em geral são médias utilizando os dados disponíveis numa realidade específica. Não podemos esperar a ciência medir tudo e todos para depois começar a trabalhar. O trabalho já começa com a operação de informações que guardam alguma incerteza, na esperança de que, ao longo do tempo, esse processo vá se aprimorando.
No passado, foi criado um conjunto de referenciais de base que servem como uma gramática geral para saber o quanto cada atividade emite, ou pelo menos as principais atividades. Alguns desses referenciais são apresentados por órgãos científicos internacionais, como o próprio IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês), os chamados fatores de emissão. Outros foram criados por organizações sociais ou científicas que oferecem um parâmetro.
F: E como o Brasil se situa nisso?
DV: O Brasil, ao longo da última década, tem feito esforços muito importantes para tropicalizar esses fatores. É o chamado Tier 2. Muitos desses números já foram ajustados à realidade brasileira. Há, sobretudo, duas questões centrais. Uma delas é mensurar o sequestro, o que a atividade retira da atmosfera. Essa absorção ou remoção ainda precisa ser melhor apreciada, calculada e reconhecida pelas metodologias e padrões de referência.
O segundo elemento é um amadurecimento científico relevante para algumas atividades, mas a economia é muito dinâmica e os processos de produção evoluem muito rápido. Portanto, não adianta ter uma tabela com um conjunto de categorias de produção genéricas, porque muitas vezes essas integrações não são compreendidas quando discutimos a sustentabilidade do setor.
F: O Brasil ainda está muito longe da possibilidade de estabelecer significativamente essa economia do carbono?
DV: O carbono no Brasil é um mercado boutique. São poucas empresas, organizações e agentes econômicos que têm, de fato, se beneficiado com ele. Parte da razão é que ainda não temos uma regulação estabelecida. Nesse ambiente de indefinições, é um mercado que gera incertezas e que normalmente cobram um preço.
O custo dos projetos é muito alto e o regime é totalmente internacionalizado, com as certificadoras vindo de fora, que cobram em dólar e poucos conseguem pagar. É natural que um mercado em evolução comece enxuto, antes de crescer. Quanto ele vai se expandir ainda é uma questão difícil de responder.
F: Quais empresas e iniciativas o sr. destacaria no trabalho com carbono?
DV: A SLC Agrícola tem trabalhado fortemente nessa direção. Em Mato Grosso, o Imac (Instituto Mato Grossense Ambiental) tem projetos de pecuária sustentável que são exemplares. A região de Sapezal (MT) fez uma parceria com a Embrapa e Bayer para desenvolver o Bayer ProCarbono, um conjunto de fazendas com escala razoável e que também faz a mensuração, calculando a pegada ambiental e mostrando o caminho para que isso possa ser espalhado e desenvolvido. Esses são os projetos mais visíveis e reconhecidos no mercado brasileiro.
F: Quais mecanismos precisam ser desenvolvidos para ampliar a aderência do campo às transformações?
DV: Falta uma base nacional de métricas e metodologias ajustadas a cada sistema produtivo, a cada hectare do solo brasileiro. Ter essas informações em um ambiente comum, compartilhado e rigoroso é uma maneira de baratear o acesso a essas informações e facilitar, portanto, a escala do uso dessas informações para o desenvolvimento de projetos.
Ou dependeremos, em cada caso, de uma atividade artesanal e custosa para entrar na fazenda, cavar buraco no chão, criar uma linha de base e, a partir daí, ver como cada projeto gera um impacto ambiental.
Já existem iniciativas nessa direção. O próprio centro criado recentemente pela Esalq, chamado G-Carbon (Centro de Carbono em Agricultura Tropical), tem como propósito construir e disseminar essa base. Precisamos, também, de assistência técnica.
É um processo de aprendizagem que envolve desenvolvimento, erros e acertos, pelas vias pública e privada. Aposto muito nas cooperativas para ajudar a dar escala a esse processo de acessar informações, com bases de dados referenciais.
F: Tudo isso tem um custo.
DV: Tudo isso, naturalmente, depende de investimentos. O produtor, por um lado, se pergunta ‘vale a pena investir?’. Por outro lado, percebe que se não fizer algo, talvez o produto dele não seja tão competitivo. Algumas linhas de crédito já oferecem taxas de juros mais vantajosas. Startups que fazem financiamento com diferencial de preço para desenvolver boas práticas e ter transparência no inventário da produção, criando uma dinâmica em que parte desse custo é dividido entre os agentes da cadeia. Estamos assistindo aos primeiros capítulos dessa história.
F: Qual é o valor agregado que o mercado de carbono pode gerar, globalmente?
DV: Há uma década, estamos falando de 2014, o mercado de carbono girava em torno de US$ 200 milhões (R$ 1,7 bilhão). Em 2021 ele chegou a US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bilhões). Tem um estudo da McKinsey que sugere US$ 50 bilhões (R$ 268 bilhões) para 2030, no mercado voluntário. O mercado regulado gira muito mais do que isso.
F: Qual a parte do agro nessa história?
DV: O problema é que isso ainda não chega no agro. É concentrado em muito poucos agentes que têm acesso à burocracia do carbono e conseguem movimentar a máquina para atender clientes. Precisamos expandi-lo, pois hoje somos um manancial de serviços ambientais, a começar por carbono estocado no solo, em reservas, nas áreas de preservação, que constituem um grande capital natural. Mas esse processo ainda está em evolução – é difícil mensurar.
O mundo caminhará cada vez mais para incorporar o verde na avaliação da produção. O Brasil é um país que tem experiências exemplares e um potencial imenso. Mas não podemos achar que vamos nos dar bem ou ser aplaudidos lá fora apenas por aquilo que fizemos no passado. Precisamos trabalhar, negociar, criar uma ciência, organizar um sistema que seja juridicamente seguro e, diplomaticamente, precisamos bater às portas do mundo para explicar a realidade e as virtudes da produção tropical de alimentos.
F: Um tema frequente nas palestras do sr. são os acordos comerciais do Brasil e Mercosul com a União Europeia. O que isso tem a ver com carbono?
DV: A Europa, que estimulava fortemente a adoção do mercado de carbono por outros países, mudou o script e começou a adotar medidas unilaterais para fazer valer a sua expectativa ambiental, com uma legislação de combate ao desmatamento, ao mesmo tempo que voltou atrás nas negociações com o Mercosul.
O que tudo isso significa, do ponto de vista do clima e do comércio global, é que a aposta na agenda climática não é mais aquela de colaborar e premiar quem faz bem-feito, dividindo, digamos assim, uma parte da renda e da riqueza para remunerar os serviços ambientais. Mas o contrário. É uma imposição de custos e não mais benefícios ou oportunidades – um conjunto de exigências, sob pena de perder mercado.
Saímos de um circuito que abria portas, tendo o mercado de carbono como a linha de frente, e entramos em um outro circuito, em que o que se espera é criar restrições e imposições unilaterais para proteger mercados ameaçados, em um ambiente de tensões geopolíticas crescentes.
F: Quais as consequências disso?
DV: Essa virada cria dois efeitos. O primeiro é levantar perguntas sobre o potencial que o mercado de carbono terá no futuro próximo. Especialmente nessa dinâmica internacional em que a afirmação geopolítica passa a ser uma variável central nas negociações entre os países. A segunda, se não vamos começar a viver um momento de tensões em que o verde passa a ser uma espécie de arma econômica protecionista, manipulada e que mistura objetivos nobres de proteção ao clima, com objetivos dissimulados de proteger mercados pouco competitivos lá fora.
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