Vanusia Nogueira, diretora-executiva da OIC (Organização Internacional do Café), está sempre em viagem. Sua missão é promover os grãos especiais, cafés com mais de 80 pontos na escala da BSCA (Associação Brasileira de Cafés Especiais), entidade que a mineira de Santa Rita do Sapucaí (MG) dirigiu por 12 anos, até ser a primeira mulher alçada à representação global do setor. Para ela, porque há de fato uma demanda em alta pelo café de qualidade, a equação mais importante nos dias atuais é o equilíbrio entre a busca incessante por mais qualidade na xícara e sua precificação.
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“Qual é o grande desafio? O café é um produto sensível ao preço. O consumidor, de modo geral, se acostumou ao baixo custo. É preciso atenção ao mudar esse patamar em muitos países, inclusive no Brasil”, disse ela em entrevista exclusiva à Forbes, em passagem pelo país. Antes disso, ela estava na Indonésia conhecendo propriedades que fazem o conceituado café sumatra e na próxima semana estará em Moçambique, numa missão de fortalecimento da cadeia produtiva local. A visita técnica é importante porque o país africano foi o penúltimo a entrar na OIC, em junho de 2023, antes da Arábia Saudita.
Vanusia, que tem 62 anos e formou-se administradora em Rosário, na Argentina, conta como a instituição foi crucial na última reunião do G7 em Turim, Itália, há um mês, ao convencer os ministros do meio ambiente dos maiores parques industriais do planeta a incluírem o café na lista de commodities prioritárias. “Provamos que 25 milhões de famílias vivem disso. Se não conseguirem renda, não terão como comprar alimentos. Então, o café também é segurança alimentar”, argumenta. Confira a seguir a entrevista completa:
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Qual foi o divisor de águas na produção de cafés especiais no Brasil e no mundo?
Foi em 1974, quando se utilizou pela primeira vez essa palavra — o termo “cafés especiais” —, por uma senhorinha norte-americana que se chamava Erna Knudsen. Velhinha já, ela começou a apresentar os diferenciais de qualidade.
O segundo grande divisor de águas foi o concurso de qualidade no Brasil, que hoje se chama Cup of Excellence e que introduziu as primeiras metodologias de avaliação sensorial para cafés especiais no mundo. A partir daí, virando o século, começamos a falar muito mais de cafés especiais, inclusive no Brasil.
E qual é hoje, internacionalmente, o nível de preferência pelos grãos especiais?
O consumidor de café especial, geralmente, é quem está muito antenado, engajado e quer conhecer a história por trás do café. Isso, hoje, é muito importante. Ele, também, se preocupa com sustentabilidade, com os processos de verificação. O perfil do café que prefere vai depender muito do momento do dia.
Na maioria dos casos, os mais adocicados, com menor nível de acidez, ou seja, os nossos cafés achocolatados, de frutas secas, são aqueles que você toma diversas vezes ao dia, feliz da vida, e se sente muito bem. Já os cafés exóticos, não só no Brasil, mas no mundo todo, são extremamente valorizados, como vinhos premiados — para saborear nos momentos de indulgência. Não são cafés para tomar diversas vezes no dia.
E quais são os principais atributos que diferenciam esses cafés?
O primeiro diferencial é que ele não é amargo, diferente do tradicional, aquele café que você não toma sem colocar açúcar e fazer careta. É um café, como se diz nos termos técnicos, livre de defeito. Não tem verde, não tem grão passado. Vale lembrar que o café continua sendo uma fruta, é a semente dela que bebemos. Como qualquer fruta, tem que estar no ponto certo. Essa é a questão inicial. A partir daí, se você estiver aberto para descobrir mais, começa a identificar outros atributos.
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Qual é a avaliação, de modo global, do consumidor em relação ao diferencial existente entre o café comum e especial?
Hoje, os consumidores conseguem entender muito claramente a diferença em termos de qualidade, prazer, da indulgência mesmo — essa coisa de ser merecedor de algo melhor. Eles conseguem perceber, mas não chegam ao ponto de diferenciar, por exemplo, um grão frutado de um floral. Mas veem claramente a diferença entre os comuns e especiais.
Qual é o grande desafio? O café é um produto muito sensível ao preço. O consumidor, de forma geral, se acostumou com o café custando pouco. É preciso atenção em como mudar esse patamar em muitos países, e isso inclui o próprio Brasil, no que diz respeito ao poder aquisitivo, que não é tão elevado assim no país, buscando um equilíbrio no processo.
Na xícara, qual é a diferença de preço entre o grão comum e o especial nos países que mais consomem café?
Um café expresso normal na Europa custa um euro e 20 centavos (R$ 6,75), mais ou menos. Quando você fala de um café especial, não vai pagar menos de três ou quatro (entre R$ 17 e R$ 23). Isso é mais que o dobro. E cafés premiados na Trafalgar Square (principal praça pública de Londres), em que uma xícara chega a ser vendida por 50 libras esterlinas (R$ 30). É a indulgência de um vinho premiado. Vira um acontecimento. Esse exemplo que estou citando era um café etíope, que ganhou o concurso de qualidade de cafés na Etiópia.
E qual é o papel da OIC, atualmente, para garantir a qualidade do café e manter o padrão especial como tendência?
A OIC foi a gestora do projeto que culminou na criação do Cup of Excellence. Chamava-se Café Gourmet. Os consultores vieram para o Brasil e chegaram à conclusão de que aqui havia cafés fantásticos, que o mundo não conhecia e consequentemente não reconhecia. Desde então, a OIC trabalha dentro desse contexto de apoio à qualidade nas mais diversas origens. E acabamos de estabelecer um acordo com a SCA (Specialty Coffee Association) para aprimorar cafés especiais.
Pode falar um pouco desse projeto?
É um trabalho de como preparar cafés especiais e acessar mercados. Tem um lado muito parecido com o Programa Educa, do grupo Três Corações. Para trabalhar com o produtor em questões muito básicas, porque esse é um desafio enorme para mim e que estou levando para o mundo: ver o café como negócio, uma questão em que, no Brasil, evoluímos muito.
Não adianta falar, ‘ah, eu produzo café porque não sei fazer mais nada na vida’ ou porque ‘não tenho outra opção’. Isso não funciona assim. É preciso ver o grão como negócio. Então, estamos fazendo um trabalho de educação e a SCA está montando um programa para apoiar esses produtores, para colocar cafés especiais no mercado. Já escolhemos alguns países onde vamos começar, que serão anunciados durante a World of Coffee, em Copenhagen (Dinamarca), em junho.
Nos últimos 10 anos, tendo em vista a promoção dos cafés especiais, o setor está agregando valor por causa da evolução de sua na qualidade?
Quando o produtor busca fazer um café especial, ele melhora a qualidade do grão como um todo, em toda a lavoura. Com isso, há uma elevação se consegue um 85+, um 80+, ou até mesmo se tiver cafés muito ruins, com liofilizados (processo que impede a deterioração do sabor e aroma).
Quando o produtor consegue fazer uma bebida dura, já tem o diferencial. Essa é uma forma, não a melhor, mas uma das grandes formas de agregar valor e aumentar a margem do produtor. No caso do Brasil, é a melhor forma. O país está muito à frente em tudo que diz respeito ao desenvolvimento e à tecnologia da porteira para dentro. Em outros países, temos outras linhas de trabalho que precisamos seguir para que os produtores consigam ter uma renda melhor.
Quais são as próximas iniciativas da OIC para promover essa valorização?
Estamos discutindo mecanismos de financiamento, porque existe muito dinheiro e fundos, cada um com sua regra. Há todo um trabalho para ver o que precisa ser financiado e como vamos trabalhar isso, sobretudo na educação, pois normalmente é dificílimo para os fundos financiar a educação. Buscamos maneiras de promover o que lá fora se chama de capacity building (construção de capacidades). Isso é fundamental para produtores nos países menores e precisamos criar esse mecanismo.
Recentemente, conseguimos um feito fantástico. A Itália tem esse ano a presidência do G7. Conseguimos, por meio dela, que o café fosse considerado um produto prioritário. É a única commodity citada no documento final de uma reunião com os ministros de meio ambiente dos principais parques industriais do mundo como uma referência de sustentabilidade.
Ou seja, trouxemos o café para o contexto de segurança alimentar. Café é um alimento? Não. Mas conseguimos provar para eles que nós temos mais de 25 milhões de famílias no mundo que vivem disso. Se eles não conseguirem a renda por meio dele, não vão ter como comprar alimentos. Então, no mundo, café também é segurança alimentar.
Isso pode trazer algum tipo de alívio para as regras ambientais exigidas pela União Europeia?
A regulação contra o desmatamento já é lei na Europa. Alívio para essas regras, não teremos. O que estamos vendo é que a área desmatada pelo café não chega a 0,1% no mundo. Temos certificações de sustentabilidade há mais de duas décadas. Nesse processo, o café não vai ser impactado diretamente pela regulação.
O que falta é ter um pouco mais de clareza da própria UE (União Europeia) em relação a como vamos provar. Quais são os documentos e dados efetivos que precisamos ter na devida diligência para comprovar que estamos ok. Esse é o ponto.
O Brasil é um país de vanguarda quando o assunto é café especial?
É o país de vanguarda em tudo que diz respeito a café, produção e consumo.
O que se considera especial no Brasil é o café tradicional consumido na Europa?
Não, de forma alguma. As metodologias utilizadas para cafés especiais são as mesmas no mundo inteiro. São os cafés 80 pontos acima. Essa metodologia foi definida em 1999 e hoje é utilizada no mundo inteiro.
Quais são as medidas mais recentes em termos de investimento para o Brasil expandir sua oferta de cafés especiais?
A iniciativa privada tem feito muito. As indústrias estão trabalhando muito nisso e as cooperativas fazem o trabalho delas. Agora, em termos de investimento, não tenho a menor ideia do quanto (isso significa em valores). O novo centro de pesquisas da Três Corações, o Centro Rituais de Cafés Especiais 85+, inaugurado sexta-feira, 24, em Varginha (MG), por exemplo, não é pouca coisa. É dentro dessa lógica que a OIC e a BSCA também vêm trabalhando pesadamente.
A tendência é que futuramente todo café brasileiro exportado seja especial?
Não. Café especial é café de nicho e vai continuar sendo assim. No momento em que todo o café produzido pelo Brasil chegar a esse ponto, se algum dia isso acontecer, só cafés acima de 80 pontos, com certeza a turma vai subir a régua e não chamarão mais os 80 pontos de café especial. Como estamos falando de um mercado que é de nicho, tem de haver uma diferenciação.
O aumento no volume de exportações de café robusta não significa uma piora na qualidade do café exportado?
Não, de forma alguma. O que está acontecendo nesse momento é que os cafés robusta, os canéforas, têm ganhado muita qualidade. Não são cafés ruins, não é por aí. Inclusive existem cafés especiais canéforas. Segundo ponto: para cafés solúveis e instantâneos, o uso do robusta é muito intenso no processo de industrialização.
E os solúveis, hoje, não são só aqueles tradicionais. Alguns solúveis são muito bons. O aumento da exportação, no caso a brasileira, deve-se a um problema climático nos outros dois grandes países produtores de café robusta, que são o Vietnã e a Indonésia.
Qual valor agregado o produtor pode esperar ao substituir o café tradicional pelo especial na produção?
Isso varia muito. Quando o mercado está aquecido e os preços do café tradicional estão tão altos, como agora – há algumas semanas –, o diferencial entre o tradicional e o especial tende a diminuir. Isso porque existe um teto, que é o preço que esses cafés vão ter ao chegar na gôndola. É o quanto todo mundo está disposto a pagar.
Quando o mercado do tradicional está muito ruim, com o preço muito baixo, o valor dos cafés especiais é 50%, até 100% mais caro, tranquilamente. Com o mercado pagando por um tradicional fino, como por exemplo agora, R$ 1.350 a saca, é claro que o especial não vai ter um diferencial tão grande, a não ser que seja 90+.
Existe um investimento médio calculado para o produtor que deseja aprimorar a sua produção de café, tornando-o especial?
Vai depender muito em qual nível sua propriedade está, e onde, além do tamanho do gap. Para ver o quanto vai precisar investir, porque tem uma questão de investimento em equipamentos, educação e treinamento de equipe. E, depois, outro investimento em acesso ao mercado.
Quais são, hoje, os melhores cafés do mundo?
Existem muitos cafés excelentes no mundo hoje e varia muito de acordo com o perfil de paladar dos consumidores. Tem uma enormidade de cafés brasileiros extremamente diferenciados e que são excelentes. Para quem gosta de cafés mais cítricos, com mais acidez, há os cafés da Etiópia e alguns da Costa Rica.
Para quem gosta, os cafés que vão para a linha do chá, do jasmim, toda a linha dos famosos gueixas, uma variedade de arábica do Panamá, estão entre as principais referências mundiais, e já têm muita produção no Brasil. Na Indonésia, tem café arábica que chama sumatra, também muito reconhecido e valorizado no mundo.
Quais são hoje os países em que está havendo uma substituição do consumo do café torrado comum pelo especial?
São Itália, Alemanha e países mais maduros no consumo de café, que já eram um mercado muito tradicional na Europa e começaram a se abrir para os especiais. E outro mercado muito interessante nesse contexto é o asiático.
Não pela substituição do torrado e moído pelo especial, mas num contexto em que eles gostam e consomem muito o solúvel pela praticidade e conveniência, por ser mais parecido com o preparo do chá. Eles pulam o café tradicional e vão direto do solúvel para os especiais, sendo hoje o mercado que proporcionalmente mais cresce.
É tendência que os Estados Unidos e a China busquem atingir, com o tempo, o nível de excelência exigido pelos consumidores europeus?
]O consumidor europeu não é tão excelente, tão exigente assim. Ele tem preocupações em termos de sustentabilidade, ambientais e sociais. A população europeia é antenada nisso. Ela é mais engajada nos propósitos. Mas, em termos de qualidade, também há um consumo muito interessante nos EUA, para cafés de qualidade. E a China entra no contexto da Ásia.
E na produção?
Os EUA têm uma produção no Havaí, que é o Kona Coffee. Agora também há uma produção mínima na Califórnia. Na China, nossa estimativa é de que o país deve estar produzindo em torno de 1,5 milhão de sacas. E não vemos muitas perspectivas de que esse volume cresça substancialmente. Os chineses acham que é especial, mas na realidade é um café normal. E como é uma área muito alta, úmida e que compete com a produção de chá, que é muito mais tradicional e eles conhecem muito mais, acaba não havendo muita perspectiva de aumentar a área.
A Colômbia hoje importa do Brasil, mas era nosso páreo duro. Como o país se posiciona na oferta de especiais?
Eles se posicionam e continuam dizendo que são os maiores fornecedores de cafés especiais do mundo. Se considerarmos os cafés finos, que é uma categoria abaixo dos especiais, talvez praticamente toda exportação da Colômbia seja entre fino e especial, o que seria mais do que as nossas 9 milhões de sacas de especial.
Mas, se não considerarmos o fino, considerar somente o especial, eles têm uma produção um pouco menor do que a nossa. A nossa relação em termos de produção e qualidade com a Colômbia vai meio que igual às nossas rivalidades de esporte com a Argentina. Entre tapas e beijos.
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