O médico Edson de Godoy Bueno (1943-2017) fez dois bons negócios na vida. O primeiro em 1978, aos 35 anos, quando comprou uma pequena clínica médica no subúrbio do Rio de Janeiro. “Comprei como pobre compra as coisas, pagando em prestação”, diria ele anos depois. O segundo em 2012, quando vendeu a pequena clínica – já transformada na gigante de medicina Amil – para a empresa americana United Health Group (UHG), uma das maiores dos EUA, pelo equivalente a US$ 4 bilhões.
A UHG pensou estar fazendo o melhor negócio da história. Nos EUA, cerca de 78% da população tinha algum tipo de convênio de saúde. No Brasil, a participação era de apenas 25%. Uma simples regra de três permitiria prever um crescimento de 200%.
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Foi um fracasso retumbante. A UHG teve de enfrentar custos elevados e incontroláveis, um Judiciário estruturalmente contrário ao setor e a necessidade de adaptar uma empresa brasileira às exigências legais de uma companhia aberta americana. Dez anos depois, a UHG estava aflita à procura de um comprador – que se materializou na pessoa do empresário José Seripieri Júnior. Em dezembro de 2023, o ex-proprietário da Qualicorp (vendida à Rede D’Or em 2019) desembolsou R$ 2 bilhões, assumiu R$ 11 bilhões em passivos e eventuais contingências legais e retornou à vanguarda dos empresários de saúde em grupo.
Desses três negócios, apenas a compra da clínica no subúrbio do Rio não teve a participação do brasileiro que mais sabe comprar e vender empresas: o banqueiro Ricardo Fleury Lacerda. “A compra da Amil foi um dos negócios mais difíceis da minha vida”, diz ele. Aos 56 anos, formado em administração de empresas pela FGV e com MBA pela Universidade Columbia, Lacerda participou de quase todos os grandes negócios nacionais, fosse assessorando o comprador ou auxiliando o vendedor.
Trajetória
Nascido na cidade paulista de São José do Rio Preto, em uma família majoritariamente de advogados e políticos, ele tinha algo diferente. “Sempre gostei de matemática”, diz o executivo. “Na juventude, eu pensei em fazer direito, mas a subjetividade me incomodava.”
Por isso a decisão de cursar administração de empresas na Fundação Getulio Vargas e de batalhar um estágio na área de crédito do Chase Manhattan do Brasil, no fim da década de 1980. “Fui estagiário no Chase em São Paulo, fiz um treinamento de crédito na matriz em Nova York e me apaixonei pela área”, diz ele. “Banco de investimentos envolve o lado técnico, da análise econômica e empresarial, e o lado humano, que é saber negociar e lidar com pessoas.” O passo seguinte foi cursar um MBA na Universidade Columbia, onde conheceu outra paixão: Carolina, com quem se casou e tem três filhos.
Após o MBA, com 28 anos, Lacerda foi convidado a trabalhar no Goldman Sachs. Uma frase explica a importância dessa instituição. Em 1971, quando lançou as bases do Garantia, Jorge Paulo Lemann (terceiro brasileiro mais rico segundo a Forbes) dizia que sua meta era criar o Goldman Sachs brasileiro. Lacerda trabalhou em Nova York por seis anos e, no início de 2002, foi convidado a presidir o banco no Brasil. “Assumi o cargo no dia 31 de janeiro e completei 34 anos no dia 14 de fevereiro.”
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Logo no início, ele teve de se desdobrar na função. O mandato da matriz era reduzir os negócios por aqui. Em 2002, os banqueiros temiam a cada vez mais provável primeira vitória de Lula em uma eleição presidencial. “Meu chefe me disse que a Goldman deveria trabalhar apenas com privatizações e empresas multinacionais”, diz. “Eu respondi: ‘Tudo bem, mas como vamos ganhar dinheiro?’, porque, no Brasil, esses negócios são pouco lucrativos.”
Lacerda via outro caminho: apoiar os empreendedores brasileiros. “À medida que essas empresas crescessem, fariam negócios cada vez maiores e mais rentáveis”, diz. O momento era propício. A virada do milênio foi um período exuberante para o empreendedorismo local. Houve vários movimentos de consolidação setorial, como papel e celulose e bancos de varejo, além de inúmeras aberturas de capital. Setores como o imobiliário e o varejo segmentado estrearam nos pregões, e a linguagem das startups tornou-se cada vez mais falada.
Isso facilitou o trabalho de banqueiros de investimento. “Quando eu comecei, nenhum empresário queria conversar, pois só vendia a empresa quem fracassava”, diz Lacerda. Uma transação da qual Lacerda participou no início da década mudou as coisas: a venda da Arisco para a Bestfoods (depois Unilever) por US$ 900 milhões (valor atualizado). Foi um divisor de águas. O empresário goiano João Alves de Queiroz Filho, conhecido como Júnior, vendeu a empresa, ficou bilionário e criou a Hypermarcas, atual Hypera. No fim de março, Júnior era o 48º mais rico entre os brasileiros, com um patrimônio de US$ 1,3 bilhão segundo a Forbes americana. “Esse negócio literalmente abriu os olhos dos empresários.”
À frente do Goldman Sachs, Lacerda fechou grandes transações, como a venda da empresa de papel Ripasa para a Suzano, e a primeira operação internacional da Ambev (a compra da cervejaria Quilmes, na Argentina), liderando o ranking de fusões e aquisições brasileiras em 2003 e em 2004. Porém, o crescimento dos negócios estava limitado por orientação da matriz, que sempre resistiu à ideia de expandir as atividades.
Nesse momento, o banqueiro foi convidado a assumir a direção do banco de investimentos do Citi na América Latina, onde ficaria por seis anos e ampliaria um networking já robusto. “Foi uma época muito frutífera”, diz ele. “Fizemos a venda do Assaí para o grupo Pão de Açúcar e a venda do Atacadão para o Carrefour.” O banco também coordenou a migração da Embraer para o Novo Mercado, segmento da B3 com a melhor governança corporativa.
Em 2008, veio a crise do subprime, quando a quebra do banco de investimentos americano Lehman Brothers em setembro desnudou os graves problemas do setor. “Os bancos cresceram tanto que se perdeu a responsabilidade do dono, e isso comprometeu o dever dessas instituições de zelar pelos interesses do cliente”, escreveu na ocasião o ex-ministro Antonio Delfim Neto.
O nascimento do BR Partners
“Percebi que havia espaço no mercado para um banco de investimentos que alinhasse seus interesses com os do cliente”, diz Lacerda. “Isso garante resultados acima da média no longo prazo.” E em 2008, com uma carreira inquestionável no mercado financeiro, ele resolveu fazer algo que muita gente consideraria insensato: pedir dispensa de um emprego regiamente pago e abrir o próprio negócio, o banco BR Partners.
Em casa, a conversa com Carolina foi tranquila. “O mais nervoso era eu, que sou a parte cautelosa do casal; ela me apoiou desde o começo.” De posse de um plano de investimentos, Lacerda foi conversar com os conhecidos. Ele levantou R$ 100 milhões em capital semente de 10 investidores – muitos deles, ex-clientes: além de Seripieri e de Queiroz Filho, a família Zogbi, a quem havia assessorado na venda da Ripasa, e Jaime Pinheiro, ex-dono do banco 077 BMC, vendido ao Bradesco.
Logo em seguida, Andrea Pinheiro, filha de Jaime, trabalharia com Lacerda, que havia conhecido nos tempos de MBA em Nova York. “Fomos almoçar e ele me perguntou se eu gostaria de trabalhar com ele”, diz. “Aceitei o convite antes de saber qual era o negócio.” A executiva ficaria no BR Partners até 2021. No fim de 2023, foi indicada para presidir a Fundação Bienal de São Paulo.
O primeiro escritório foi um espaço no family office de Queiroz Filho, que tinha espaço vazio, enquanto o primeiro imóvel alugado não ficava pronto. Atualmente, o BR Partners ocupa um andar de um dos mais sofisticados prédios da Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. A entrada do edifício é enfeitada com a escultura de uma baleia, que dá apelido ao edifício. Os corredores e salas de reunião são adornados com várias centenas de pequenos troféus celebrando negócios. Em 2021, o banco liderou a lista de fusões e aquisições no Brasil, mesmo ano em que listou suas ações na B3.
Na ponta do lápis, o BR Partners tem sido um excelente negócio. Nos 11 anos entre sua fundação e a abertura de capital, o patrimônio mais que dobrou, subindo de R$ 100 milhões para R$ 210 milhões. No IPO, foram captados R$ 400 milhões, e o patrimônio encerrou 2023 em cerca de R$ 800 milhões. Segundo o banqueiro, no início das atividades, as transações no mercado de capitais eram de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões, e atualmente chegam a R$ 500 milhões, o que justifica um capital reforçado, permitindo voos mais altos para o BR Partners.
E também para Lacerda. Nas horas vagas, o banqueiro deixa o comando do banco e assume o manche de aviões e helicópteros. Certificado no Brasil e nos Estados Unidos, ele já levou a família para a Europa várias vezes. “Tem de ir bastante gente, porque senão o custo não justifica.” Muitas das viagens são para assistir a torneios de tênis, esporte que Lacerda pratica e acompanha de perto.
São-paulino convicto, o empresário é conselheiro do São Paulo Futebol Clube. Não pergunte o que ele acha do tradicional estádio do Morumbi, hoje MorumBis. “Ele foi construído para abrigar 150 mil pessoas; cabem apenas 60 mil, das quais talvez 15 mil consigam ter uma ideia do que está acontecendo no gramado”, reclama. “Já propus em uma reunião do conselho demolir tudo e reconstruir, mas eles acham aquilo o máximo.” Lacerda não insiste. Sabe bem que há cláusulas que são inegociáveis em qualquer negócio.
(Reportagem publicada na edição 117º da Revista Forbes, acessível no aplicativo na App Store e na Play Store, no site da Forbes e na versão impressa)
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