Flávia Cutolo: a arquiteta que faz escola na Integração Lavoura-Pecuária

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V.Ondei

Flávia Cutolo está à frente de uma operação que é referência em ILP

Quanto vale uma fazenda modelo que tem como princípio de manejo a ILP (Integração Lavoura-Pecuária), no limbo entre a excelência e o estado da arte, localizada no coração de Mato Grosso? “Não faço essa conta porque eu não venderia a fazenda”, diz a arquiteta Flávia Cutolo, 64 anos, sucessora na agropecuária que leva o sobrenome da família, em Itiquira, município de 13 mil habitantes a 360 km da capital Cuiabá. Itiquira, de origem tupi e que significa “água em abundância”, está entre as 50 cidades mais ricas do agronegócio brasileiro, por causa dos grãos e da pecuária bovina. Tomando o preço da terra na região, e se fosse apenas uma fazenda dita “basiquinha”, ou seja, minimamente formada e arrumada, valeria acima de R$ 100 milhões.

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A Agropecuária Cutolo, de 9.100 hectares, “não tem preço” como projeto de vida porque ela serve de modelo para uma tarefa urgente do país, que é a de espraiar a ILP. Hoje, o Brasil tem 17,430 milhões de hectares em sistemas integrados, segundo a Rede ILPF (Integração-Lavoura-Pecuária-Floresta ), dos quais 2,3 milhões em Mato Grosso. Mas o Brasil possui cerca de 177 milhões de hectares de pastagens, segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), dos quais quase 110 milhões possuem algum nível de degradação. Desse total, há cerca de 28 milhões de hectares de pastagens – com níveis de degradação intermediário e severo –, aptos ao cultivo de grãos.

Para ter uma ideia do que isso significa, a área destinada aos grãos na safra 2023/24 foi de 79,7 milhões de hectares. É o mote para “crescer sem derrubar árvores”. Não por acaso, no final do ano passado, o governo lançou o PNCPD (Programa Nacional para Conversão de Pastagens Degradadas em Sistemas de Produção Agropecuários e Florestais Sustentáveis), ainda em construção, mas que mira a conversão potencial de 40 milhões de hectares em 10 anos.

Quem chega na Agropecuária Cutolo pode colocar todos esses dados no bolso, porque ela está a anos-luz do que se vê no cenário acima. Isso porque ela faz parte de uma nova era de fazendas que têm a ILP como um sistema indivisível. Explicando: nas últimas décadas, as fazendas sempre olharam de forma individualizada para cada uma das atividades porque, de fato, criar gado e plantar são atividades com demandas diferentes. Fazer a integração das áreas não é uma tarefa simples, mas possível.

Uma história de construção da ILP

A Agropecuária Cutolo cultiva soja e milho, faz melhoramento de gado nelore para a produção de tourinhos, tem confinamento e cria cavalos. Há 11 anos, a operação dos negócios da família está nas mãos de Flávia, que mudou o rumo de sua vida para que a propriedade não perdesse o rumo. Formada na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da Universidade de São Paulo, ela exerceu a profissão por 12 anos na capital, foi para o mundo corporativo do marketing e para o empreendedorismo por meio de uma franquia. Até que a vida tratou de lhe pregar um “freio de arrumação”, expressão do sertão do Brasil que significa parar de forma abrupta para que a bagagem se ajeite. A história que trouxe Flávia até aqui está fincada nos pioneiros que foram para a região do Cerrado.

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Gado em área de ILP e no fundo estão os silos de grãos, um investimento de cinco anos atrás

A fazenda comprada em 1965 era projeto do pai, um médico que possuía alguma terra para criar suínos e plantar feijão e milho, em Sorocaba, a cerca de 100 km da cidade de São Paulo, onde está sua base familiar, e que faleceu no final de 2012. No grupo dos sucessores ainda há um irmão e uma irmã. “Meu irmão já trabalhava com meu pai, mas por motivos pessoais foi deixando de vir para a fazenda”, diz Flávia à Forbes. A irmã, que trabalha na USP, na área de pesquisa ambiental, também não era uma opção, conta ela, sentada numa sala de reuniões do escritório da fazenda, embora o irmão ainda administre a parte financeira dos negócios.

“Eu tenho que encarar, nem que seja para fazer o papel de olho do dono.” Flávia conta que em março de 2013 colocou os pés em Mato Grosso, depois de 30 anos, para assumir toda a operação. “Até ali, tinha vindo umas três vezes, a última lá por 1980. Não era uma fazenda de férias, como a de Sorocaba, que foi vendida antes do meu pai falecer. A vida, o trabalho e os filhos me levaram para outro lugar”, afirma. “Quando voltei, levei um choque porque o Mato Grosso lembrado era aquele lá atrás, quando a fazenda não tinha uma lasca de cerca, uma estrada pra chegar. Meu pai era louco.”

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Louco, traduzido por ela mesma, é o seguinte: embora médico, o pai veio de uma família de poucos recursos. Depois de formado, para se sustentar, foi dar aula particular a vestibulandos de medicina. “Ele acabou criando o primeiro cursinho preparatório de vestibular e, uma curiosidade, o dono do Objetivo, o Di Genio, foi seu aluno”, diz Flávia (João Carlos Di Genio, que faleceu em 2022, em 2021 estava no ranking da Forbes como o bilionário brasileiro com a maior fortuna no setor de educação, com um patrimônio avaliado em R$ 7 bilhões à época).

O que liga essa história de vestibular ao Mato Grosso é que, para dar as aulas de biologia, o pai precisava de animais empalhados e foi de um empalhador que ouviu “você precisa conhecer aquela região”. Hoje, as terras de Itiquira é a casa de Flávia, que passa 10 dias por mês na lida direta e outros 20 dias em São Paulo, “mesmo que o namorado reclame”. A área original da fazenda era de 14 mil hectares, que por anos teve partes vendidas para levantar recursos destinados a abrir as áreas legais. E tudo sempre era reinvestido na terra. Tanto que, até este ano, a sede da fazenda ainda era uma casa de 1970, da época do mínimo conforto. “Agora, estamos acabando de construir outra e espero me mudar em breve”. No entanto, a nova casa é apenas um detalhe na estrutura.

Da área total, 2.700 hectares são de pecuária e outros 1.676 hectares nesta safra estão na integração-lavoura pecuária, do total de 5.800 hectares de lavouras cultivadas no sistema de plantio direto. “Essa terra toda poderia ser plantada com soja. Mas nunca foi o projeto do meu pai e também não é o nosso. Então, a gente tem que ter, na área com vocação total para a soja, uma pecuária que seja produtiva e que se equipare aos resultados da lavoura”, afirma Flávia. Para isso, a fazenda passou por uma transformação de ciclo completo – que vai do nascimento ao abate do gado –, para a recria e engorda com terminação em um confinamento com capacidade estática para 2.400. Com vários giros, a Cutolo tem engordado por safra entre 6.000 e 8.000 animais. Para 2024 estão previstos 7.000 animais engordados no confinados por cerca de 100 dias.

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Touros selecionados na Cutolo e vendidos no mercado da genética

Além disso, Flávia mantém um núcleo de animais superiores da raça nelore para produção de 180 touros e uma centena de matrizes que ela vende anualmente. O rebanho de seleção tem 700 animais, com 300 mães na base. Hoje, Flávia tem touros bem ranqueados nos sumários da ANCP (Associação Nacional de Criadores e Pesquisadores), e da ABCZ (Programa de Melhoramento Genético de Raças Zebuínas). Não à toa, também há seis touros de genética superior em centrais de inseminação para a coleta e venda de sêmen.

Flávia saiu do ciclo completo para intensificar o uso da terra, já que a dupla vaca-bezerro precisa de grandes áreas. A família chegou a ter quatro fazendas arrendadas por conta da cria e chegou a aventar a comprar outra fazenda de igual tamanho, lá pelos 10 mil hectares. “Concentrar e intensificar”.

A produção de soja por hectare deste ano, como ocorreu em boa parte do Centro-Oeste, veio abaixo por causa da seca e está batendo em 50 sacas por hectare, ante 70 sacas na safra 2021/22 e 60 sacas na anterior. “O clima está muito complicado. Vimos na região uma fazenda do lado da outra: uma que tinha perdido e a outra não”, diz ela, mesmo com toda a tecnologia empregada. Por exemplo, pivô de irrigação, fertirrigação da lavoura com os dejetos do confinamento, evolução do maquinário e o monitoramento por satélite. Por exemplo, há seis anos o investimento foi em silos com capacidade para 24 mil toneladas de grãos (cerca de 400 mil sacas de 60 kg), para proteger a produção. A região, normalmente, já é seca. “A ILP veio lá por 2010, timidamente, mas já pensando na resiliência. “Aqui, na época da seca, é de chorar. De maio a setembro não cai uma gota. Por Deus, dá uma chuvinha. É desesperador”, afirma.

Sala de aula da Cutolo

A Agropecuária Cutolo é hoje uma espécie de sala de aula. A fazenda utiliza o Climate FieldView, a plataforma de agricultura digital da Bayer, e é regularmente monitorada. A Nutripura, de Rondonópolis, a cerca de 260 km de Itiquira, que faz gestão de nutrição e pastagens, não apenas monitora a fazenda como também a usa de exemplo.

No mês passado, a empresa utilizou a propriedade para um dos quatro dias de campo que estão sendo neste primeiro semestre e que antecede sua conferência anual, marcada para julho, em Cuiabá. Justamente para mostrar que na pecuária a Cutolo produz 105 arrobas de carne por hectare ao ano, quantidade 25 vezes maior que a média nacional. Compareceram 560 pessoas entre produtores rurais, gerentes de fazendas e estudantes de ciências agrárias.

“A fazenda é um ecossistema”, diz Roberto Aguiar, sócio e diretor geral da Nutripura. “Ela precisa ser lucrativa e sustentável, baseada em uma sequência de adoção de tecnologias.” Hoje, a empresa assiste produtores que são donos de 150 mil hectares e 1,2 milhão de bovinos. “A pecuária está definitivamente saindo das áreas marginais nas propriedades que cultivam grãos, porque o agricultor também está se tornando um pecuarista.” Em tempos não muito remotos era comum ouvir que o pecuarista precisava aprender a ser agricultor. Outra verdade caída por terra é a de que onde vai soja casco de boi não pisa. Ou aquela ainda melhor: Cerrado? Nem dado, nem herdado.

Divulgação

Soja em área de ILP, em solo saudável pela ILP

Foi para desenvolver e testar tecnologias adaptadas à região do Cerrado, uma área que cada vez mais entra no foco de ambientalistas e produtores rurais em suas listas de tarefas de preservação da vegetação, ou seja, intensificar para não desmatar, que a empresa criou em 2015 o CPN (Centro de Pesquisa Nutripura), uma fazenda experimental que também serve como centro de treinamento para equipes de campo de fazendas parceiras. São 117 hectares com uma estrutura que comporta 1.200 animais confinados, com duas áreas separadas, um com 42 baias e outro com seis, com capacidade para até seis experimentos. Na área de pasto, são 24 piquetes para até 15 animais, onde há quatro experimentos (águas, seca e um para cada período de transição).

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Há pesquisas que vão do uso de resíduo úmido na ração animal, como é o caso do milho para etanol, a sistemas de monitoramento por satélite. E claro, as startups fazem parte do jogo. Por exemplo, a Z-Tecs, do Paraná, que faz modelagem por imagem do peso vivo de um animal, e a InovaFarm, que criou o “acelerômetro”, usado em gado de leite, mas agora sendo pesquisado para gado de corte. “A tecnologia está testando para que ela consiga predizer quando o boi deve sair de um piquete e ir para o outro. Hoje, é o olho que determina”, diz Leandro Martins, gerente de pesquisa do centro, zootecnista e doutor em nutrição de ruminantes.

A mais recente pesquisa é a medição do estoque de carbono, incluindo áreas de ILP, comandada pelo também zootecnista Fernando Ongaratto, mas doutor em forragicultura. Ele criou uma metodologia para quantificar a pegada de carbono nas fazendas e vem testando na prática o seu projeto de serviços ecossistêmicos visando um futuro mercado de carbono na agricultura e pecuária. “Nós queremos saber qual a pegada de carbono, quantas pessoas são alimentadas por uma determinada área, quantos hectares são poupados e qual a lucratividade da fazenda”, diz Ongaratto. As medições vêm sendo feitas há duas safras, na 2022/23 e na 2023/24 e, não por acaso, a fazenda escolhida para medições em larga escala foi a da Agropecuária Cutolo.

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