As ruas de Beccar, cidade argentina a 17 km ao norte da área metropolitana de Buenos Aires, estão silenciosas. O meio-dia se aproxima e há pouco movimento nas ruas. Em parte porque é verão e porque nos primeiros dias de 2024 é comum as pessoas tirarem férias. Mas não para Eduardo Novillo Astrada e toda a equipe da Agrotoken, com uma agenda em um ritmo muito diferente do que se vê nas ruas pacatas.
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“Foi um trabalho muito desgastante. Até diria que me senti um CEO ausente por causa do tanto de tempo que estava dedicando a isso”, diz Astrada, que na semana passada havia acabado de voltar à Argentina, vindo dos Estados Unidos, quando concedeu esta entrevista à Forbes, a partir da sede da empresa. Ele fala da recente rodada Pré-Série A de US$ 12,5 milhões (R$ 61,6 milhões na cotação atual), anunciada no dia 3 de janeiro, e que contou com a participação de empresas como Bunge e Visa. “Felizmente conseguimos fechá-la num momento chave e com dois investidores de luxo”, diz Astrada.
Forbes: Como foi o processo?
Astrada: Considero que foi muito longo por causa de todo o contexto. Não só com a captação de recursos em todo o mundo, que fez um ajuste enorme, mas também para nós, um tanto identificados com blockchain e cripto, foi um ano difícil. Tudo o que aconteceu com a FTX nos afetou, como a todos do setor. E depois veio a guerra com a Ucrânia. Tudo isso fez com que o financiamento da rodada demorasse e quando já estava quase finalizado, a Bunge aparece e pede para entrar no mesmo processo. Então o tempo se estendeu, mas por um problema bacana para resolver.
F: O sr esperava a adesão de nomes como Bunge e Visa?
A: Quando sonhávamos alto lá atrás nem passava pela nossa cabeça ter o grau ou o calibre de investidores que temos. Ser, possivelmente, a número um em agricultura hoje no mundo, aquela que mais avança no caminho da digitalização e inovação na agricultura, como a Bunge, e a empresa número top em pagamentos globais, tornou todo o processo muito enriquecedor. Além disso, validam o negócio e nos dão muita tranquilidade para o futuro por termos dois parceiros estratégicos como eles.
F: Considera ser um apoio tanto para a empresa quanto para o setor?
A: Acho que sim. Que eles tenham entrado na rodada e validados é muito importante. Acabei de chegar dos Estados Unidos, onde tivemos diversas reuniões, e talvez sejamos a empresa que está mais no início da história dos investimentos Visa. Isso fala muito bem de nós e do comprometimento de toda a equipe de gestão da Visa, gente que trabalhou a nosso favor para que investissem na Agrotoken. Já tendo adiantado muito dinheiro antes, com US$ 4 milhões (R$ 19,7 milhões), para nos tornarmos um cartão Visa. É um impulso muito grande para tudo de bom que temos feito neste mundo com inovação e em algo tão novo como a tokenização e tudo o que tem a ver com blockchain.
A rodada do Agrotoken e a aposta no Brasil
A Agrotoken nasceu em 2020 com o objetivo de trazer ativos do cotidiano para o blockchain, ou seja, a tokenização. Seus fundadores, Eduardo Novillo Astrada (CEO) e Ariel Scaliter (CTO), já viam naquela época o potencial desta tecnologia para digitalizar unidades de diversos setores e para começar escolheram um conhecido por todos: a agricultura. A primeira etapa da empresa consistiu na criação de tokens que representam toneladas de soja, milho e trigo no blockchain, três das principais commodities de exportação da Argentina e da região.
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Dessa forma, os agricultores, que historicamente se limitavam a vender suas colheitas às tradings e firmar contratos de liquidação de grãos com preços não superiores a três ou quatro meses da data de entrega, ou optar por mantê-los em silos em suas lavouras, têm uma nova opção.
Trata-se de entregar sua colheita e transformar cada tonelada de grão em um token cripto-soja, cripto-milho ou cripto-trigo, que é identificado exclusivamente no blockchain e que os produtores podem vender no momento em que precisarem, ao preço atualizado, no porto de Rosário Norte, principal porto exportador da Argentina, até que veio a expansão.
Segundo o próprio CEO da empresa, no final de 2022 e início de 2023 começou uma nova etapa em que o foco mudou e passaram a apostar tudo no Brasil. “Não só porque é o país número um na agricultura, mas pensamos que é o país número um em tudo o que uma economia e finanças tokenizadas irão fazer”, explica Astrada.
E continua: “Venho dos Estados Unidos, onde todos apoiam aquela ideia que tivemos há um ano. O Brasil está se posicionando como referência no mundo do blockchain e da economia e finanças tokenizadas. Acho que é uma aposta que deu certo para nós e a Visa e a Bunge também estão apostando no Brasil. Nosso foco e recursos, inclusive aqueles que são agregados nesta rodada, estão aí. Talvez algo mais venha por aí, mas em princípio o foco total é o Brasil”.
Forbes: Durante muito tempo, quando uma empresa do setor recebia uma rodada de investimentos, a dinâmica era gastar muito para crescer rapidamente. Isso tem mudado recentemente. Qual modelo que o sr. adotará?
Astrada: Temos outro modelo de negócio que não é o de crescer rápido e com números que talvez, às vezes, possam estar meio inflacionados. A nossa estratégia é o contrário, porque essas empresas de criptografia tinham negócios B2C ou de varejo e nós somo B2B2C.
Temos um relacionamento por meio de empresas e para assinar um acordo e começar a trabalhar levamos entre seis meses e um ano e meio. Nossos tempos são diferentes, totalmente diferentes de outras empresas de blockchain ou do mundo criptográfico. Então, para nós, é ir aos poucos, devagar e com passos firmes.
F: No início de 2023, sua empresa tinha como meta fechar o ano com US$ 500 milhões em transações tokenizadas. Conseguiram essa meta?
A: Não atingimos US$ 500 milhões tokenizados mas estivemos perto. Houve uma grande seca na Argentina que travou muito crescimento e com o Brasil começamos a crescer fortemente no último trimestre do ano. Também começamos a migrar um pouco para uma infraestrutura de tokenização de ativos reais.
Nosso modelo está migrando da tokenização quantitativa para projetos de longo prazo onde ativos reais podem ser tokenizados com outras indústrias e empresas. Também estamos realizando projetos de sustentabilidade onde podemos simbolizar esforços nesse espaço. Em vez de ir direto ao cliente estamos passando pelas empresas e está demorando um pouco mais do que havíamos planejado naquele momento porque estamos fazendo desenvolvimento de infraestrutura para essas empresas que são muito grandes.
F: Quais as diferenças que o sr. encontrou entre Argentina e Brasil?
A: Se compararmos Argentina e Brasil em 2023 há duas coisas que foram fundamentais. A Argentina foi complicada para todos em 2023. As pessoas não estavam dispostas a fazer coisas novas, especialmente na agricultura, em um ano muito difícil. A política interferiu no ânimo das pessoas e foi difícil estarem dispostas a fazer coisas novas quando o que importava era manter o que tinham. Enquanto isso, o Brasil teve uma colheita recorde e avançou em direção a uma economia tokenizada. Foi preciso calma e resiliência para entender os dois cenários.
F: Acredita que a Argentina possa reverter essa tendência…
A: Vemos que a Argentina pode mudar e ter um ano melhor com uma colheita melhor, como se acredita, e com estabilidade de preços e regulamentações mais claras na liquidação de grãos. Mas voltando, o Brasil está numa posição de que não há outro país no mundo melhor para realizar este tipo de operações.
F: Os produtos nos dois países são iguais?
A: São produtos diferentes e documentações diferentes devido à forma como são manuseados. Há 70% de processos iguais, mas os 30% diferentes significam que temos que nos adaptar às questões tecnológicas e regulatórias.
F: Recentemente, a Câmara Fintech Argentina divulgou um relatório sobre tokenização e uma seção explica que esta tecnologia aplicada à agricultura pode resolver problemas de acesso ao crédito. Como o sr. vê isso?
A: Hoje temos um acordo com o Banco Galicia e outras instituições financeiras e estão sendo realizadas operações com os tokens como garantia. O crédito é o grande problema da agricultura. Na Argentina é como ocorre com todas as áreas da economia, mas no Brasil o acesso ao crédito também é um desafio na agricultura. Estão mais avançados porque têm mais jurisprudência e regulamentação nesse sentido, mas ainda é um problema. O que vemos é que o grande crescimento do Brasil em relação à Argentina se deve ao maior acesso ao crédito e estamos tendo muita tração nesse sentido.
A regulamentação do setor criptográfico
Recentemente, a SEC (Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos) aprovou os primeiros ETFs Bitcoin oficiais naquele país. Este fato é tomado pela indústria como um passo em frente no caminho da regulação do setor, um processo que continua a gerar debates de todos os tipos.
“Para nós, é essencial e continuamos a fazer tudo de acordo com as regras. Não queremos ir contra nenhuma regulamentação. Além do mais, quando temos alguma dúvida vamos ao Banco Central ou à CNV para explicar o que queremos fazer e até termos as licenças não continuamos”, diz Astrada sobre este ponto. “Isso nos faz andar mais devagar em comparação com outras empresas do setor, mas sempre seguimos as regulamentações. Quanto mais cedo chegarem aquelas que favoreçam o crescimento, melhor, porque é aí que este negócio dará o grande salto.”
Forbes: Existem empresas que tokenizam todos os tipos de ativos, inclusive os direitos de formação dos atletas. Mas a questão regulatória aparece sempre como um aspecto a ser esclarecido. Como é para o sr.?
Astrada: Quando contei que a gente demora para fechar acordo com uma empresa isso também acontece lá. Veja que em um mês fechamos a parte comercial; o resto é tudo compliance e regulatório. Se as regulamentações fossem mais claras tudo seria mais simples e rápido, mas entendemos que é tudo muito novo. Hoje, existem empresas com setores jurídicos que não têm ideia do que estamos falando. Então, temos que levar toda a documentação para eles, fazer muitas reuniões para explicar tudo, ter aprovações externas porque geralmente são empresas multinacionais, etc. Essa é a parte difícil de sermos o primeiro a fazer isso.
F: Que outras barreiras o sr. tem encontrado?
A: Como qualquer nova tecnologia, a maior barreira que temos é a adoção. Estamos sempre um pouco obcecados em comunicar e chegar às pessoas para que confiem nesta tecnologia e adotem-na. Começamos pela agricultura, que é talvez o setor mais tradicional de todos, mas penso que estamos progredindo pouco a pouco.
Porque a tecnologia funciona, é validada por grandes empresas e é uma realidade. O bom é que no ano passado todos aprenderam o que é tokenização e sabem o que é blockchain. Isso já é um enorme avanço e o mundo está convencido de que a economia será tokenizada. Acreditamos que quem vai levar o cliente a adotar a tecnologia é a empresa, o fornecedor, aquele que vende há muito tempo e tem contato direto.
F: Questões mais financeiras, como ETFs de Bitcoin, por exemplo, ajudam nesse processo?
A: Completamente. Porque passamos por momentos difíceis e saímos deles com sucesso. Toda aquela onda de regulamentação e de gente relaxando na hora de usar isso se traduz em adoção e nos ajuda. Ficamos um pouco isolados do ecossistema porque tudo que era blockchain ou cripto era como um palavrão, mas mesmo naquela época geramos um nome e muita confiança. Então, se isso ajudar, subiremos mais rápido. Vemos que um novo ciclo de alta está chegando para o setor e isso é positivo para nós. Quanto mais regulamentação, segurança e transparência houver, melhor.
O futuro da tokenização
Um relatório recente do BCG (Boston Consulting Group) observa que “grande parte da riqueza mundial hoje está trancada em ativos ilíquidos que, devido a fatores como acessibilidade limitada para investidores em massa, obstáculos regulatórios e outros cenários, os usuários têm dificuldades em adquirir ou negociar “.
O relatório do BCG indica ainda que as tendências atuais mostram que o tamanho total dos ativos ilíquidos tokenizados, incluindo imóveis e recursos naturais, poderá atingir US$ 16,1 bilhões (quase R$ 80 bilhões) até 2030.
Forbes: Na sua visão, quais são os setores mais atrativos para tokenizar além da agricultura?
Astrada: A primeira coisa que será tokenizada são as finanças. Tudo o que tem a ver com cheques, compras de ações, transações, etc., será tokenizado primeiro porque é o mais rápido. Hoje, os traders fazem tudo com bots e acrescentaram muita tecnologia para que essas pessoas sejam as primeiras a adotar a tecnologia.
Depois, tudo que é imobiliário, embora não seja tão fácil como todos pensam porque não se tem um preço transparente e 24 horas por dia. No mesmo edifício, um apartamento não tem o mesmo preço que o apartamento dois níveis acima. É por isso que penso que depois do aspecto financeiro virá tudo o que estamos fazendo com a agricultura.
F: O sr falou que é muito importante determinar o que vai ser tokenizado dentro de um processo produtivo. Estamos em um processo onde os setores procuram quais unidades para tokenizar?
A: Não apenas o quê, mas também o como. Eles são uma combinação porque é isso que lhe dá unidade. A tokenização ou digitalização de ativos parece fácil, mas não é tão fácil. Estamos muito convencidos do que fazemos porque simbolizamos coisas do dia a dia das pessoas, seja comida, um pedaço de campo produtivo, carne, açúcar, etanol. São todas coisas que se usa diariamente.
Na América Latina, apenas 2% das pessoas têm os seus investimentos ou poupanças no mercado de capitais. Se lhes dermos a oportunidade de economizar gasolina, terra, açúcar, trigo, milho ou carne, coisas que consomem e em que acreditam, a tendência é que entendam isso com mais facilidade, inclusive que também podem aproveitar esse mercado.
F: Uma espécie de troca digital…
A: Acho que o bom da tokenização e do blockchain é que podemos voltar à troca. Quem produz café pode pagar com café. Quem produz carne pode pagar com carne. E assim por diante. Esse é o grande diferencial que o blockchain traz ao mundo. A moeda não vai ter a importância que tem hoje.
A Agrotoken em 2024
Embora o foco da Agrotoken continue sendo principalmente o Brasil e, secundariamente, a Argentina, Astrada afirma que em breve irão agregar alguns novos países às suas operações. “Tivemos propostas para ir também à Colômbia e ao México, mas queremos consolidar na Argentina e no Brasil e adicionar Paraguai e Uruguai em 2024, embora sem perder o foco no Brasil”, afirma o CEO da Agrotoken.
F: Isso significa aumentar a equipe?
A: Hoje, estamos contratando mais gente no Brasil e estamos em um momento de reorganização porque temos três ou quatro projetos muito grandes que estamos começando a desenvolver. Temos muitas reuniões com a Bunge e outras empresas do setor para continuar crescendo e atualmente estamos lançando projetos. Conforme os projetos solicitarem, adicionaremos mais equipamentos, mas hoje estamos bem e temos uma equipe sólida.
Assim que termina a entrevista à Forbes, Astrada pede 10 minutos para participar de uma videochamada. O meio-dia já passou e lá fora o verão se impõe nas ruas de Beccar, que permanecem silenciosas. Enquanto isso, o trabalho continua nos escritórios da Agrotoken. “Agora, o que falta é a adoção e esse é o grande desafio”, diz o CEO da empresa ao retornar da conversa. E finaliza dizendo que: “Ninguém mais fala que isso não vai acontecer”.
*Reportagem publicada originalmente na Forbes Argentina (tradução: Forbes Agro)
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