Rastrear a origem do gado criado e abatido no país tem sido um quebra-cabeças nas últimas décadas. A falta de tecnologias de monitoramento, dificuldades de manejo do gado e as multi vozes por vezes discordantes no setor têm ditado o ritmo desse movimento. Mas esses entraves vêm sendo paulatinamente desembaraçados e há quem deseje de fato acelerar por meio de novas ferramentas de gestão e regulação de mercado. O Pará está nessa corrida, estado que detém o segundo maior rebanho bovino do país com 26,7 milhões de animais, do total nacional de cerca de 200 milhões.
“Para que o estado consiga entregar uma pecuária sustentável é preciso rastrear todo seu o rebanho, desde a origem, chegando até o produto final, a carne. E ele pode servir de exemplo para outros estados. Mas, para implementar a rastreabilidade sanitária e sócio ambiental do rebanho precisamos do diálogo e da cooperação entre produtores, órgãos governamentais, empresas, instituições financeiras e sociedade”, diz a engenheira agrônoma Marina Piatto, diretora executiva do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), ONG criada em 1995, com sede em Piracicaba (SP), e que atua na promoção de práticas sustentáveis nas cadeias produtivas da pecuária e da agricultura.
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“Rastreabilidade de gado no Pará não é apenas uma exigência do mercado global, mas também é uma oportunidade de aumentar a produtividade, eliminar o desmatamento e sem que nenhuma terra indígena ou área protegida seja invadida, e que todas as áreas de pastagens degradadas sejam recuperadas”, reforça Piatto. Rastrear o gado é como se cada um tivesse documentos, tipo RG e CPF, permitindo saber sua origem e destino.
Não por acaso, nesta quinta-feira (16), ela foi a cicerone do 1°Diálogos Boi na Linha, evento que recebeu em Marabá, um dos principais municípios do estado, representantes de frigoríficos, como Rio Maria, JBS e Masterboi; do MPF-PA (Ministério Público Federal), Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes), CICB (Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil), Febraban (Federação Brasileira de Bancos), além de outras instituições, como o Basa (Banco da Amazônia), mais associações de criadores, agteches, outras ONGs, como a Proforest, TNC ( The Nature Conservancy) e NWF (International Wildlife Federation), mais representantes da agropecuária familiar.
No Pará há 18 milhões de hectares de pastagens em 19 mil propriedades rurais dedicadas à pecuária, das quais 70% possuem até 300 hectares. “Vamos discutir as diretrizes que nos une, porque quando a crise chega ao grande ela chega ao pequeno também. Hoje, 30% da carne que vai para o mercado é produção nossa”, diz Francisco Ferreira de Carvalho, coordenador estadual da FETRAF/PARÁ (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado do Pará). “Tem um mundo com conhecimento maior, por ter uma oportunidade maior no mercado, e tem um mundo com credibilidade mais baixa, que é o mundo familiar. Mas é preciso dizer que quase 90% das terras nós pegamos já degradadas”, afirma o sindicalista, que coloca questões de urgência como crédito e monitoramento do rebanho visando a produtividade e a prestação de serviços ambientais.
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Beatriz Secaf, gerente de sustentabilidade da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), entidade que representa 120 bancos e 98% dos ativos desse setor, em que nos dias atuais 10% de suas carteiras são direcionadas ao agronegócio, diz que desde 2008 há um aprendizado e que hoje o setor da pecuária já é um setor bastante regulado. A data se refere à divulgação de uma lista de infratores e municípios críticos do desmatamento, levando a severas ações de fiscalização e operações da Polícia Federal e IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) contra o desmatamento.
A lista chegou a ter mais de 50 municípios do Pará, entre eles Marabá. Hoje em dia a lista tem um número acima de 50 municípios. “Estamos falando de 15 anos de compromissos dos bancos em questões socioambientais na análise das suas operações, uma exigência do Banco Central. Inicialmente focado em Crédito Rural e depois, desde 2014, e de uma forma mais incisiva desde 2021, o BC reforçou todo o seu arcabouço regulatório para tratar de políticas de gestão de risco”, afirma Secaf.
Ela diz que a Febraban colocou foco na gestão do risco de desmatamento. “Há cerca de 160 milhões de hectares de pastagem no Brasil. Então, não dá para não considerar esse setor quando a gente discute questões relacionadas ao uso do solo no país. Carne é uma cadeia que já está mobilizada há 20 anos nessas instruções de monitoramento e rastreabilidade. Então, a ideia com o nosso protocolo é trazer o setor financeiro para esse movimento, monitorando os sistemas de rastreabilidade no país, como gestão de risco.”
Por que tem Boi na Linha no Pará
Boi na Linha, de fato, não é apenas o nome do evento, mas de um movimento iniciado há cinco anos pelo Imaflora. A ideia com ele era harmonizar o conjunto de regras e critérios de monitoramento da cadeia. Desde o ocorrido em 2008, os produtores e frigoríficos passaram a assinar TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) perante o MPF (Ministério Público Federal). Harmonizar regras é, por exemplo, como se verifica uma compra de gado, como reportar resultados, entre outros, em que cada TAC tinha um ritual próprio. Neste ano, pela primeira vez, as auditorias nos frigoríficos foram unificadas. “Hoje, o Boi na Linha tem um arcabouço de documentos e regras em uma plataforma, em um conversa permanente e que não mais depende de um procurador com histórico na questão”, diz
Ricardo Negrini, procurador do MPF-PA. “Por isso, o grande desafio, e que vai ser o tema a enfrentar, é a cadeia dos fornecedores indiretos.” Explicando, os indiretos são os pecuaristas que não vendem o gado para o frigorífico, mas vendem, por exemplo, o bezerro para que outro pecuarista engorde. É comum um animal passar por duas ou até três fazendas durante sua vida. “Hoje há ferramentas de informação e começa a despontar trabalhos em sistemas que permitem a requalificação do produtor”, afirma Negrini.
Monitorar significa dar transparência ao mercado pecuário por meio de ferramentas que possam ser inseridas na produção do gado. No Pará, uma série de iniciativas vêm sendo implementadas como apoio ao pecuarista para que ele permaneça na atividade. A JBS, por exemplo, o maior grupo processador de carne bovina do mundo, criou os Escritórios Verdes em 2021, que funcionam para ajudar os produtores a regulamentar sua produção, caso ele não esteja em conformidade com as leis. Antes, o frigorífico rejeitava sua produção sem dar satisfação do motivo. Hoje, ele presta assistência para que os acertos sejam realizados e que ele volte ao mercado.
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Hoje, diariamente, a JBS monitora 73 mil fazendas cadastradas como possíveis fornecedoras e que correspondem a uma área de cerca de 61 milhões de hectares. “Desde 2009, a JBS começou a ter políticas de conformidade para a compra de gado. A gente chegou a ter mais de 15 mil fornecedores bloqueados por essa política”, diz Kavati. “Com o programa de reinserção e inclusão de fornecedores que estavam bloqueados, já conseguimos fazer mais de 21 mil atendimentos e 7.500 propriedades foram regularizadas com apoio dos Escritórios Verdes.” Kavati conta que há uma grande parte de atendimentos em regularizações cadastrais do CAR (Cadastro Ambiental Rural). O trabalho é suportado por cerca de 40 consultorias em 19 estados.
O fundador e CEO Frigorífico Rio Maria, fundado em 2002 no município de mesmo nome, com mais uma unidade em Xinguara, o pecuarista e empresário Roberto Paulinelli,diz que vê no setor um interesse muito grande em melhorar a pecuária. Ele se coloca como exemplo, porque em 2002 começou a criar gado no estado, em um modelo pouco produtivo e por isso foi empurrado para sistemas mais intensos de criação. Hoje, sua fazenda é considerado um “centro de pesquisa” para rastreabilidade bovina de toda a cadeia e intensificação de pastagens.
Nesta sexta-feira (16), estava na agenda de Paulinelli receber uma equipe do curtume gaúcho Durli, em sua fazenda, com o qual ele fechou uma parceria para fornecer couro bovino rastreado, mais uma equipe da rede de fast food McDonald’s e, segundo o executivo, a varejista de hipermercados Carrefour também já mostrou interesse no sistema. “A gente não tem, hoje, como vender essa carne mais cara. Mas temos uma previsão para o futuro: a rastreada não vamos vender mais barato. O boi China é um exemplo e todo mundo foi atrás.”
Ele se refere ao padrão de boi exigido pelo mercado chinês, de até 32 meses e ter no máximo quatro dentes molares na boca, o que significa animais jovens, e que os pecuaristas correram para atender este mercado. “Nós estamos conseguindo monitorar os fornecedores indiretos, porque já monitorávamos os diretos. Ficou mais fácil”, afirma Paulinelli. “Vou rastrear agora, porque não tem como ficar fora. O que penso para a frente, como norte, é que nosso desafio é o cliente de carbono neutro.”
O post Boi com “CPF e RG”: por que a pecuária rastreada é caminho sem volta na Amazônia apareceu primeiro em Forbes Brasil.