Certa vez, o artista plástico e fotógrafo português Fernando Lemos, escreveu sobre a obra de Amelia Toledo: “Amelia pega uma pedra e a pedra olha para nós”. Quem conhece a trajetória desta artista multidisciplinar e sua sensibilidade singular certamente entenderá a poesia nas singelas palavras de Lemos.
“O rio (e o voo) de Amelia no Rio”, que acontece até 21 de outubro, é a primeira exposição individual póstuma em nosso espaço carioca dedicada à visionária Amelia Toledo (1926-2017). O leitmotif,ou ideia dominante da individual, gira em torno das peças que ela produziu na Cidade Maravilhosa nas décadas de 1970 e 1980. Os trabalhos mais recentes, incluídos na mostra, surgiram de suas investigações realizadas no Rio e se espraiaram de forma capilar para outros campos de sua vasta atividade. Amelia adorava o Rio, ali passou um dos períodos mais felizes de sua vida.
Abrangendo do micro ao macro, em materiais inusitados dos industrializados aos naturais, são inúmeras as vertentes de suas investigações artísticas: pintura, desenho, escultura, gravura, instalação, painéis para arquitetura, projetos para obras públicas, design de joias e de objetos domésticos, funcionais. Sua contribuição à arte brasileira está em pé de igualdade com colegas de profissão (e geração) como Mira Schendel, Tomie Ohtake e Lygia Pape, mas devido à extensão e à pluralidade da produção de Amelia Toledo, para compreendê-la é preciso “fazer um passeio em minhas aventuras”, conforme ela curtia dizer.
A começar, os pais de Amelia, ambos biólogos, foram transferidos por motivo de trabalho para a Alemanha, pouco antes de a Segunda Grande Guerra ser deflagrada na Europa. A menina Amelia tinha seis anos. De pequena absorveu as lições intelectuais e científicas daquele ambiente familiar peculiar até externar o desejo pela carreira nas artes plásticas, surpreendendo os pais que a viam como futura cientista. Aos 28 anos, aprendeu o ofício de manufaturar joias em prata, silversmithing, na Inglaterra. Estudou com nomes icônicos de nossa cultura. Foi aluna do pintor e cenógrafo Ioshiya Takaoka e da modernista Anita Malfatti, estagiária do arquiteto Vilanova Artigas, onde aprendeu a realizar desenho arquitetônico e a desenvolver projetos.
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A prática no escritório de Artigas serviria para sua vertente criativa relacionada ao design. Em 1971, produziu sua obra mor nessa área: o livro-objeto “Divino Maravilhoso – Para Caetano Veloso”. Trata-se de uma fotomontagem articulada de nosso amado Caê em folhas de acetato transparente, recortado, multicolorido, que se desdobram formando outras configurações. A exposição oferece a rara oportunidade de apreciar este trabalho, fusão de arte e design de vanguarda, que se tornou um marco na história do design internacional. Em edição original de apenas dez peças, “Divino Maravilhoso” expressa a exuberância pop da Tropicália.
A seleção apresenta outros marcos do período carioca, responsável por acentuar seu diálogo entre arte e natureza, que tanto a interessava. É o caso de “Gambiarra” (1976), “O Cheio do Oco” (1973) e a série “Frutos do Mar” (1982), na qual moldes de conchas em poliéster são expostos à ação do mar até serem cobertos por cracas em uma celebração da união entre o natural e o artificial. Em exposição também está a polêmica obra política, “Reunião” (1976), composição com cinco painéis horizontais com moldes de gesso de bocas mudas de diferentes pessoas, forte metáfora à censura imposta pela Ditadura Militar, em vigor no Brasil de 1964 a 1985, hoje tão esquecida e não compreendida.
“Existem muitos filões para a investigação e a expressão. E por que não me expressar de várias maneiras se tenho esse impulso? Sinto-me no direito de fazer o que bem entendo. Em termos estéticos não tenho limitações. Trabalhei com vidro, pedras, metais, conchas, tantos materiais, e continuo a fazer essas coisas”, explicou a artista em uma entrevista publicada em 1999 no Jornal da Tarde*, por ocasião da individual de grande porte, “Amelia Toledo / Entre, a porta está aberta”, na Galeria de Arte do SESI no Centro Cultural da FIESP, na avenida Paulista. “Não pertenço a esta ou àquela corrente (artística). Tive várias influências. Desde o início trabalhei com meios variados de expressão. (…) O que importa é ter uma filosofia de vida e isso acaba se revelando em tudo que se faz”.
*“Amelia Toledo, artista livre, preocupada com o planeta”, entrevista de Cynthia Garcia para o caderno Domingo do Jornal da Tarde, 12 de setembro de 1999, página 6D.
Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte, premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) – cynthiagarciabr@gmail.com
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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