Nos anos 2000, trabalhei como lanterninha em um cinema que exibia filmes fora do circuito comercial, em um bairro de classe alta de Londres. Essa foi a forma mais eficiente que encontrei de praticar meu inglês de escola pública, e compor minha renda mensal. Meu trabalho consistia em receber os ingressos na entrada, guiar as pessoas até seus assentos e, ao final da sessão, limpar o que ficava para trás (sempre recolha seu lixo no cinema). Apesar de meus trabalhos posteriores terem sido mais alinhados à minha educação e interesses, sempre lembro dessa época com carinho, por conta do lazer envolvido. Por um salário semelhante ao que fui paga como repórter em início de carreira na mesma cidade, eu assistia a filmes incríveis de graça, tinha conversas interessantes com colegas do mundo todo, e clientes que vinham jantar no restaurante do cinema, antes da sessão. Era um trabalho legal, sem estresse ou caixas de email abarrotadas e centenas de mensagens esperando para serem respondidas no WhatsApp.
E quem pode ser julgado por querer um trabalho que pague as contas, mas também traga “paz de espírito” e um nível de satisfação que nada tem a ver com o aspecto profissional? O que parece é que uma parcela de pessoas jovens estão buscando um futuro que possibilite algo neste sentido. Uma das tendências nesta linha que vem ganhando visibilidade nas últimas semanas é a “lazy girl job”, ou trabalho da garota preguiçosa, em tradução livre. Em linhas gerais, trata-se de um movimento encampado principalmente por mulheres da Geração Z, que querem trabalhar menos, mas ainda assim receber bons salários. É o contrário do “girl boss” dos anos 2000, em que mulheres deveriam buscar posições de destaque em suas carreiras, e trabalhar insanamente para isso.
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Posts no TikTok com a hashtag #lazygirljob, que a influenciadora Gabrielle Judge diz ter inventado, já ultrapassam os 15 milhões. O conteúdo normalmente contém relatos de pessoas que trabalham em funções tipicamente remotas e que consomem menos tempo, liberando mais tempo para fazer coisas sem relação com o trabalho. Nos comentários, pessoas aprovam o modelo ou almejam trabalhar assim no futuro. O equivalente masculino dessa hashtag não parece existir ainda – inclusive, é interessante constatar que o fato de homens serem bem pagos e terem mais tempo livre não viraliza nas redes.
De forma geral, essa tendência reflete a cultura anti-trabalho que vem crescendo desde o início da pandemia e é especialmente popular entre gerações mais jovens, que cresceram em meio a recessões econômicas severas e um aumento surreal do custo de vida. Muitas destas pessoas entenderam que a estratégia de “dar o sangue” no trabalho para fazer a vida valer a pena, conforme pensam as gerações Millennial e Gen X, não funcionou, e que é preciso buscar satisfação na vida fora do contexto profissional. Esta mudança de mentalidade no trabalho é corroborada por uma pesquisa da Deloitte, lançada este ano. Segundo o estudo, 62% dos Millennials veem o trabalho como um pilar central da sua identidade, comparado a 49% dos Gen Zs.
Futuro para quem?
Existem vários ângulos pelos quais o futuro da tendência de “trabalhos preguiçosos” pode ser comentado, mas hoje vou me ater a dois deles. O primeiro é sobre o risco que este movimento pode trazer para o mercado de trabalho, em que pessoas começam a encarar suas funções como superficiais, ou até mesmo sem sentido. A própria Gabrielle Judge, criadora da tendência, alertou seus seguidores (que já começaram a sofrer retaliações por parte de seus gestores por postarem sobre seus trabalhos) para não descreverem seu ganha-pão desta forma nas redes. Segundo Judge, quem descreve ocupações que quebram o paradigma workaholic como literalmente preguiçosas não entendeu nada.
O segundo ponto – e talvez o mais importante – é justamente sobre os aspectos fundamentais que separam o “querer” e o “poder” no debate sobre um futuro em que é possível cumprir tarefas profissionais em menos tempo, e ganhar bem por isso. No momento, acessar estas oportunidades envolve transpor o abismo da desigualdade presente no Brasil, já que estes trabalhos dependem de fatores como uma boa dose de autoconfiança, e a liberdade de operar de forma remota e com supervisão mínima, benefícios normalmente garantidos a certos perfis.
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Além disso, é preciso lembrar que acesso a trabalhos como os que estamos falando aqui não são distribuídos de forma equânime entre a população jovem. Isso é real sobretudo no Brasil, onde jovens sofrem para corresponder às expectativas de empregadores, gerando fenômenos como a geração “nem-nem”, em que pessoas não estudam nem trabalham, por pura falta de perspectiva. Problemas estruturais como o racismo, a lgbtfobia, o capacitismo e o idadismo também fazem com que esta realidade seja algo cada vez mais distante para uma boa parte dos brasileiros – sobretudo mulheres, em seus vários recortes. O resultado é um cenário em que pessoas diversas continuam sub-representadas nestes trabalhos cobiçados, por conta de barreiras sistêmicas como acesso limitado à capacitação para a economia digital, e modelos enviesados de contratação.
O que interessa nessa discussão deveria ser como podemos criar um futuro do trabalho em que em que estabilidade financeira não ocorra à custa da saúde mental, e exista espaço na vida de todos para outras coisas além da ocupação profissional. Mas antes disso, é preciso discutir as mudanças sociais e estruturais para que isso ocorra, e reconhecer que trabalhar nessas condições ideais é um grande privilégio. Medidas para preparar as pessoas para um futuro do trabalho cada vez mais tecnológico são necessárias, assim como práticas inclusivas de contratação, e políticas públicas com foco em reduzir desigualdades no mercado de trabalho. Também é preciso discutir um novo modelo de capitalismo, com acesso a novos formatos de trabalho (como o “job sharing”, ou a divisão de funções de uma ocupação entre várias pessoas, muito comum em regiões como a Europa) e jornadas mais flexíveis – este é, aliás, o fator que mais impacta a satisfação no trabalho depois do salário, segundo uma pesquisa da plataforma de inteligência Futuros Possíveis, publicada neste ano.
Os temas discutidos aqui são só a ponta do iceberg do que precisa acontecer para que todos possam ser incluídos nas mudanças atuais e futuros de trabalho. Iniciativas como a semana de quatro dias de trabalho, atualmente sendo testada em maior escala em países como o Reino Unido, que também testa a renda básica universal, são avenidas que mostram os temas que precisam entrar em pauta para a criação de um futuro em que se trabalhe para viver, ao invés de viver para trabalhar.
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