A subida é tão íngreme que uma pedalada se arrasta mais lenta que um passo. Implacável, a ladeira se apresenta logo de cara. Não há terreno plano. Uma curva ligeira se amarra em outra subida – ainda mais desafiadora. Retas empinadas se sucedem conforme o Sol avisa que o dia será muito quente. São quase 7h em Virgin Gorda, a terceira maior das Ilhas Virgens Britânicas, no norte do Caribe. Quase colado ao meu pneu dianteiro, um senhor de 72 anos, cabelos brancos, sem camisa, capacete vermelho, luvas e bermuda de lycra, pedala firme, sem bufar – afinal, sobe centenas de metros até o topo da ilha pelo menos uma vez por semana, nos seis meses que desfruta desta esquina do planeta. Sir Richard Branson mescla foco e serenidade como um monge que flutua morro acima.
Veja fotos da ilha de Richard Branson:
Meu coração bate como um tambor e talvez escape pela boca, tamanho o esforço que dedico a cada pedalada. Com uma voz de fada e uma trança que escapa do capacete, Kate Doo emparelha comigo, se diz surpresa com a minha performance, jura que estou indo muito bem e pergunta se costumo pedalar nesse tipo de inclinação no Brasil. Quase sem conseguir falar, digo que não – costumo, sim, pedalar em terrenos mais planos. Procuro tirar da mente a imagem que a memória puxa da Ciclovia da Marginal – pensar no Rio Pinheiros, naquele momento, talvez fosse a gota d’água para eu parar de vez.
Kate é craque em ciclismo, corrida, kite surf e responsável pelas sessões de ioga para os hóspedes de Necker. Acompanhando o grupo de quatro bicicletas (o quarto destemido é outro brasileiro, que desiste do selim ainda no início da aventura), um furgão de apoio leva uma médica e equipamentos para emergências de saúde. Parece que estamos chegando ao fim, quem sabe esse trecho não é o último da encosta. Queimo meus últimos cartuchos de energia. Vou conseguir, imagino, empolgado. Mas a montanha tem outros planos, e revela uma nova face ainda mais inclinada. Minha vez de jogar a toalha.
Pulo do selim, ando alguns metros, e puxo o ar pela boca como se fosse encher a maior bexiga do mundo. Estabilizo a respiração, sinto confiança para voltar ao pedal – agora sim estamos perto do topo. Em poucos minutos, Richard encosta a bicicleta próximo a um mirante que descortina um mar caribenho pintado pelo Sol nascente e por pequenas ilhas negras na contraluz como se fossem o dorso de baleias gigantes. Após estacionar, o bilionário britânico, fundador do Grupo Virgin (47 companhias operando em 35 países, empregando mais de 60 mil pessoas), caminha em minha direção, sorridente. Tem um olhar penetrante sob gotas de suor que minam da testa. Está inteiro. “Well done!”, diz com firmeza e sinceridade enquanto me cumprimenta.
Se a viagem fosse só por essa experiência, já teria valido a pena pegar três voos e uma lancha de meia hora para desembarcar em Necker. Mas é apenas a manhã de um dos cinco dias que passo em um dos lugares mais exclusivos e sustentáveis do planeta. Por alguns minutos, admiramos em silêncio o visual desconcertante do topo de Virgin Gorda e localizamos Necker no oceano sereno. Hora de pedalar morro abaixo até o porto, pegar a lancha e retornar para o café da manhã. Richard reclama um pouco dos freios e Kate o aconselha a descer no carro de apoio para não correr riscos. Nós vamos de bicicleta – e a trança esvoaçante da ciclista instrutora de ioga comprova que descemos em alta velocidade.
Presente para a namorada
Richard se apaixonou por Necker em 1978, durante um voo de helicóptero – paixão capaz de fazê-lo comprar a ilha de 0,29 quilômetro quadrado por US$ 180 mil (vazia e sem nenhuma estrutura) e dar de presente para a então namorada (hoje esposa) Joan. Quatro anos mais tarde, o empresário resolveu abrir as portas de casa para receber alguns turistas na ilha – segundo o próprio, o lugar “é simplesmente lindo demais para não ser compartilhado.
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Atualmente, o paraíso caribenho particular comporta 48 hóspedes. A diária da ilha inteira para o grupo, distribuído em 24 suítes, sai por US$ 134.500. Além da acomodação, o valor prevê todas as refeições e bebidas (alcoólicas ou não), traslado de lancha a partir das vizinhas Virgin Gorda e Beef (ilhas próximas com aeroporto); wifi em qualquer canto e um playground aquático com diversões como caiaque, kitesurf, wakeboarding, paddleboarding, vela e snorkeling – em uma das melhores visibilidades para observação da vida marinha do planeta.
Mas você estava pensando em ir com menos gente, curtir com a família, ou algo assim? Tudo bem, também. O calendário de Necker Island reserva 10 semanas no ano para o que batizou de Celebration Weeks. Nelas, é possível ficar em suítes com diárias que variam de US$ 3.700 a US$ 8.100, com estadia mínima de quatro dias. Em 2023, até o fim de maio, já aconteceram três delas – para as outras sete, restam vagas em duas semanas de agosto, duas em setembro e uma em outubro.
O coração de Necker fica no topo da ilha: The Great House. Lá, estão 11 suítes (uma com beliches para até seis crianças) e ambientes onde são servidos o café da manhã e boa parte das refeições – além de ter um visual panorâmico inacreditável de lindo. Com decoração e traços arquitetônicos balineses, as outras suítes se espalham por locações estrategicamente escolhidas – em Bali Beach, por exemplo, é possível usar a ducha externa admirando não só o mar, mas também o pequeno lago de sal onde se concentram os flamingos cor-de-rosa.
Flamingos hipnóticos, lêmures e tartarugas
Os flamingos são nativos das Ilhas Virgens Britânicas, mas corriam sério risco de extinção. Em 2006, no entanto, Richard trouxe quatro deles de Camagüey (Cuba) para começar uma colônia nesse lago em que Bali Beach funciona como um camarote exclusivo. No ano seguinte, investiu em mais 40 flamingos. Hoje, são cerca de 630. Ficar admirando flamingos e seus hábitos – como o de enfiar o bico na superfície – ou mover o pescoço de um lado para o outro como se estivesse dançando – é desses passatempos adoráveis, sobretudo quando você está tomando banho. Flamingos voando em círculo pela manhã, com inomináveis tons de azul como pano de fundo, também hipnotizam sem piedade.
Entre as 140 espécies que se estabeleceram em Necker, outro bicho que participa da rotina da ilha (e, certeza, você para pra ver) é o lêmure, um simpático de olhos arregalados e comportamento desconfiado. São sete espécies de primatas originários de Madagascar. Oi? Isso mesmo: Richard Branson entendeu que o habitat dos dois lugares era semelhante e importou alguns quando informado que corriam risco de extinção. O primeiro grupo de lêmures, que viajou quase 13 mil quilômetros, desembarcou em Necker em maio de 2010: sete machos e duas fêmeas. Para o empresário britânico, “quase nada traz mais alegria do que ver filhotes de lêmures agarrados às costas de suas mães.”
Fechando o trio de destaque de animais fora do comum, a ponte imediata para os idos que este planeta era habitado por dinossauros: tartarugas gigantes, oriundas de Aldabra, um atol de corais em Seychelles. Elas nunca param de crescer; a mais pesada das oito da ilha tem 305 quilos. As primeiras (12) a nascer fora do arquipélago no Oceano Índico quebraram a casca do ovo em 2021 – daí, é possível prever que elas vão curtir o visual Necker até 2170. Tartarugas marinhas (não tão enormes assim, mas grandes) são uma das vedetes nos extraordinários mergulhos de snorkel nas redondezas, também coalhados de arraias, tubarões e peixes de praticamente todas as cores e formatos possíveis.
Painéis solares, turbinas eólicas e carros elétricos
Necker, 100% sustentável, virou um laboratório de energia renovável para servir de exemplo a outras ilhas do Caribe a inspirar o planeta a brecar o aquecimento global. Uma planta solar foi instalada em 2015 – hoje são 1.230 painéis solares. Sob os painéis, há uma fazenda de galinhas criadas soltas – os 300 ovos por semana respondem à pela metade da demanda exigida. Em 2019, o que urgiu na paisagem foram três turbinas eólicas (10 toneladas cada). Elas se movem conforme o vento muda de direção e podem ser abaixadas no caso de a ilha receber a visita de furacões. Somando o poder dos painéis, das turbinas e do sistema de 15 racks de baterias, a ilha pode ficar sem geradores por cerca de 90% do tempo e economizar cerca de 2,5 toneladas de carbono lançadas na atmosfera todos os dias.
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Por causa do terreno montanhoso da ilha, não há bicicletas. Para a locomoção de hóspedes e funcionários, há uma frota de 35 carrinhos elétricos. As garrafas plásticas foram abolidas com a introdução de uma máquina de filtro e garrafas reutilizáveis. O uniforme da equipe é confeccionado com resíduos oceânicos reciclados e plástico. O píer da ilha é feito de plástico reciclado.
Comer com os olhos – e com o Richard
A alta qualidade da gastronomia da ilha tem um forte – na verdade, dois – aliado para você sempre se levantar feliz da vida da mesa: as locações onde as refeições acontecem transformam todas elas em um slow food quase obrigatório. Entre os destaques , jantar caribenho de cinco etapas, com lagosta e ravioli de camarão, preparado pelo chef inglês Steven Hill; degustação de pratos típicos da Índia preparados pelo chef indiano Kanaka Kanaga Raj; canoa de dois metros de comprimento recheada por iguarias da culinária japonesa que chega boiando pela piscina; jantar de despedida, pé na areia, sob céu de estrelas, com convidados vestidos de branco.
O outro aliado é a companhia de Richard Branson, disposto a prosear sobre qualquer tema a emoção de ter ido ao espaço com um foguete próprio e se tornar o primeiro empresário a ver a Terra lá de cima (deixando Jeff Bezos para trás), em 11 de julho de 2021 (“foi o dia mais extraordinário da minha vida”); às dores do envelhecimento (“é estranho ficar mais velho, ; ainda penso em mim com 20 anos, mas daí me olho no espelho… (risos) Acho que não vou ter tempo de abrir o primeiro hotel no espaço, talvez se fosse um pouco mais jovem (risos), passando pelo seu prazer extremo pelo esporte (“hoje, do que mais gosto é kite surf e tênis” – promove campeonatos anuais em Necker, onde aparecem para jogar gente como Rafael Nadal e Juan Martín del Potro) e pelas ações da organização The Elders (fundada em 2007 por ele, Nelson Mandela e Peter Gabriel – e que tem Fernando Henrique Cardoso entre seus membros – para debater a solução de problemas mundiais, como guerras e pandemias).
Bomba na saída
Entre as atividades inéditas realizadas na ilha, sublinho duas: o divertido Torneio de Tênis Necker Tipsy, em que qualquer um pode jogar, independentemente da habilidade no esporte. Com quatro jogadores de cada lado da quadra e regras adaptadas, sempre que acontece um ponto, o time que errou escolhe alguém para tomar um shot de drinque – dá para imaginar como a coisa fica após meia hora de partida. A outra: prática de ioga, conduzida por Kate Doo, bem cedinho, em uma prancha de stand up paddle, que fica presa a um suporte redondo ancorado no fundo do mar (as pranchas ficam como pétalas de uma flor). Muito marcante a fluidez da respiração profunda mesclada com o som das marolas, a brisa, os pássaros, a água transparente. Excelente.
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Na hora de ir embora, despedida calorosa de um staff que também precisa ser colocado no hall dos pontos altos da viagem. Agora, na hora de falar “até a próxima para o Richard”, deu um aperto maior. Não é sempre que se passa cinco dias com um cara desse, ainda mais no quintal dele. Na lancha rumo a Tortola, a última surpresa: todos em terra acenavam para o grupo que partia, quando, de repente, alguns funcionários começaram a correr e se atirar na água. Richard não deixou por menos: tomou distância, disparou até a borda e se jogou no mar, abraçando os joelhos, em uma clássica e inesquecível bomba caribenha.
Reportagem publicada na edição 108 da revista Forbes
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