“Oi, desculpa não te atender agora. Estou subindo pra plantar um milho rapidinho, porque está armando um tempo de chuva por aqui”, foi a mensagem deixada à primeira tentativa de entrevista para a Forbes. No início desta semana, o dia terminou sem que a conversa avançasse com a engenheira agrônoma Michele Guizini, 33 anos. Ontem (7), logo cedinho, ainda de olho no céu, ela contou sua história que faz parte de uma série de reportagens que pode ser lida no site Forbes nesse “Dia Internacional da Mulher”. Guizini começou a conversa dizendo assim: “agora dá certo falar, porque está chovendo por aqui e por enquanto não é possível plantar”.
Ela atendeu a chamada do celular a alguns metros de uma plantadeira que ela opera – no jargão do campo a palavra significa dirigir –, em uma fazenda em Querência, município mato-grossense a cerca de 700 km da capital Cuiabá, rumo ao norte, em direção ao Pará. O município é referência no estado, com plantio acima de 300 mil hectares de soja e 100 mil hectares de milho segunda safra, por ciclo, e onde estão instaladas traders do porte de Cargill, Bunge, ADM, Caramuru, Amaggi, Louis Dreyfus, SLC, entre outras.
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Na lida, operar gigantes máquinas agrícolas com até 60 linhas de plantio – que significam cerca de 30 metros de largura de uma plantadeira – faz parte do dia a dia de Guizini. Nas redes sociais, ela tem 1,2 milhão de seguidores no TikTok e cerca de 200 mil no Instagram, interessados no inusitado que é ver uma mulher “pilotando” máquinas que podem ter mais tecnologia embarcada que um carro de Fórmula 1 e que estão mais associadas ao universo masculino. A figura feminina ainda é uma novidade e desperta olhares. Mas as máquinas agrícolas entraram na vida de Guizini há muito mais tempo do que as redes sociais. “A primeira vez que pilotei um trator tinha 10 anos e foi meu tio que ensinou”, afirma. “Era um MF 290 e o modelo ficou marcado em mim”.
Uma publicação compartilhada por Michele Guizini l Comunicadora do Agro (@mihguizini)
Fabricado em larga escala nas décadas de 1980 e 1990, com fama de potente e econômico, o trator ainda pode ser encontrado no mercado de utilitários agrícolas usados, muitos em bom estado de conservação. O feito de Guizini não tem relação com trabalho infantil, mas matou a curiosidade da menina que nunca mais se separou delas, as máquinas agrícolas. Não por acaso, o trator permanece com a família, nas fazendas em Tangará da Serra (MT), onde 2 mil hectares são dedicados à criação de gado.
Sobre operar uma máquina, ela diz que não está sozinha. Na fazenda, a prima Marciane Lopes, a dona da área em que ela divide a produção, também opera uma plantadeira nesses dias de pico de safra, enquanto o primo Egmar Jr opera a colheitadeira em uma área de 600 hectares para cultivo. “Somos nós. Plantamos soja primeiro, depois o milho segunda safra e milho para silagem”, afirma. “No Mato Grosso, as áreas são muito grandes, não tem muita mão de obra e não podemos perder tempo. Toda hora conta.”
As mulheres, que começam a ocupar cada vez mais cargos de gestão, sendo algumas no topo como presidentes e CEOs, estão também avançando nessa particular seara das tecnologias embarcadas que se espalham por toda a cadeia, do laboratório, ao campo e no pós porteira. Por isso, nas empresas que fabricam máquinas agrícolas que podem passar de R$ 3 milhões – a exótica Ferrari 296 GTB 2023 foi lançada em fevereiro no Brasil por R$ 3,3 milhões – os cursos que visam formar operadoras estão na agenda. Marcas como Case, New Holland, John Deere, entre outras, precisam atender a uma demanda que já é realidade, por exemplo, para a área de construção e que cada vez mais se estende ao agro. A Klabin, uma das maiores do país no setor florestal, no ano passado era específica para uma vaga de trabalho anunciada, em relação ao gênero. O anúncio dizia: “operadora de máquinas florestais de grande porte para atividades de colheita florestal”.
Mulheres do agro em todos os lugares
Guizini se formou em engenharia agronômica em 2018, aos 28 anos. “Sei que me formei tarde para os padrões, mas nunca é tarde e sei disso”, afirma. Poucos meses depois de formada, ela já estava na Bayer, onde permaneceu por dois anos no setor de sementes. “Acho que por isso gosto tanto de plantar”, diz ela. Como consultora e vendedora direta, Guizini fazia longas viagens por fazendas e percursos de 600-700 km em um único dia não eram raros na sua agenda. “Aprendi muito. Eu era o ‘agro perrengue’, com pneu furado, no atoleiro e por aí”, diz ela. “Estava direto no campo, via de tudo, e as mulheres podem estar onde quiserem: com máquinas pesadas, com causas, coordenando equipes masculinas. De vestido e bota.”
Foi na pandemia de Covid19 que ela decidiu seu retorno definitivo para a lida no campo, com as máquinas, claro. Nesse período, ela começou ver suas redes sociais cada vez mais acessadas à medida que contava seus desafios do dia a dia, o que já fazia de modo aleatório antes. “Sobre as máquinas agrícolas, as mulheres me perguntam muito sobre habilitação e sobre os desafios da operação”, afirma. A habilitação é feita em curso de operadora de máquinas, que pode ser por meio do Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural) e também em instituições. “Mas operar uma máquina agrícola não é só subir nela. Às vezes, uma máquina tem tanta tecnologia que num primeiro momento a gente nem consegue ver tudo.”
Na operação, Guizini diz que um dos desafios está na manobra em áreas não muito planas ou que ainda tenham pedaços de tocos de árvores, por exemplo. Outra atenção a que ela se dedica é sobre os animais que podem fazer das lavouras as suas casas, como tatu, ema, quero-quero e cobras. “Ontem mesmo a gente estava colhendo soja e paramos tudo porque havia um ninho de quero-quero. Ficou lá, no meio da lavoura, um tufo de soja sem colher por causa deles. A gente pula a ninhada e continua.”
Mas não é somente a parte tecnológica ou operacional que vem impactando a vida dela. Ocupar um lugar pouco usual para uma mulher também atrai um tipo de empatia que Guizini se emociona ao falar. “Recebo muitas mensagens comoventes, de inspiração. Já recebi mensagem de uma mulher dizendo ter saído da depressão e que minhas histórias a ajudaram”, afirma. “Então, não importa se às vezes aparece um ‘hater’ dizendo que com piloto automático até a vó dele toca uma máquina. A gente agradece a tecnologia, mas nada substitui o humano.” No final da tarde de ontem, como a chuva em Mato Grosso continuava não dava trégua, Guizini não plantou nada, mas tirou a máquina do galpão para fazer a foto que abre esta reportagem. A lida de fato retoma assim que sol voltar enxugando o solo de Querência. E lá estará Guizini, mais uma vez, tocando sua máquina em frente porque a segunda safra do milho só está começando, como ocorre todos os anos.
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