Um cantinho verde no meio do paraíso que é Bariloche, na Argentina. Neste espaço, sendo inverno ou verão, está lá uma produção de alface, manjericão e outros vegetais folhosos em grandes quantidades e de qualidade premium. Assim pode ser definido o projeto construído pela engenheira agrônoma Flavia Bordato. “Me especializei nessa técnica há mais de 10 anos, depois de conhecê-la em uma viagem a Fernando de Noronha, no Brasil, em 2005. Fiquei curiosa para saber como essa comunidade conseguia manter um abastecimento regular de produtos frescos, apesar de ter uma população de apenas 400 habitantes. Aí, fui conhecer o responsável por uma fazenda hidropônica. Foi um momento que mudou minha vida profissionalmente”, disse Flávia à Forbes.
Foi a partir dai que Flavia passou a aproveitar os conhecimentos de seu curso de engenheira agrônoma, adaptando-os à sua propriedade na época, em Río Negro (na região da Patagônia). A hidroponia consiste em cultivar sem solo, em meio líquido, através do qual os elementos nutritivos chegam às plantas. Segundo ela, as vantagens da hidroponia são muitas em relação à agricultura tradicional.
“Uma das vantagens mais importantes é o menor consumo de água, já que o líquido é reciclado. Além disso, o espaço necessário é quatro vezes menor; há maior controle de pragas e doenças por meio do controle biológico; as culturas têm uma taxa de crescimento mais alta; é um tipo de agricultura que pode ser praticada em qualquer lugar e tipo de clima, o que a torna ideal em locais onde é impossível produzir alimentos frescos”, afirma Flavia.
Ela ainda se lembra do início de seu projeto, quando começou a cultivar hortaliças durante todo o ano em Bariloche. “Dadas as condições climáticas, não é fácil para o consumidor obter frutas e vegetais frescos localmente. A maioria das hortaliças que se consomem em Bariloche vem de outras províncias e estima-se que levem aproximadamente sete dias para chegar à mesa dos consumidores”, diz.
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Depois de conhecer a técnica, Flavia entendeu que se a levasse para a cidade, poderia ser uma solução para esse grande problema em Bariloche. “Juntamente com meu marido criamos a Hidroponia Andina. Com esta empreitada, não apenas fornecemos às pessoas físicas, mas cada vez mais quitandas, hotéis e restaurantes da região nos procuram para ter nossos produtos.”
A hidroponia é a possibilidade de obter produtos da mais alta qualidade em termos de frescor, sabor, textura e impacto visual. As cores são únicas e a durabilidade pós-colheita as torna muito valorizadas. Além disso, Flavia montou um centro de treinamento no qual as pessoas de todo o país podem aprender a técnica. Confira a entrevista:
Quais foram os materiais e custos para começar com sua própria estufa?
A verdade é que no início começamos com o que tínhamos para montar a estrutura em um terreno onde o meu marido guardava materiais de construção para as suas obras. Ele me disse: “começa a tentar aqui e se gostar e der certo, vamos em frente”. E assim foi. Tive que comprar perfis, solução nutritiva, bombas e sementes, mais o que já tínhamos na propriedade.
É assim que recomendo a todos que me abordam ou me perguntam por onde começar. Não aconselho grandes investimentos, inicialmente, se você nunca fez hidroponia, mas ir passo a passo sem arriscar tudo, testando e treinando neste tipo de agricultura em busca de garantir um projeto rentável e sustentável ao longo do tempo.
Você começou com 1.200 plantas e acabou produzindo 6.000 plantas. Como foi o desenvolvimento na área de marketing?
A primeira pergunta que fiz a mim mesma foi: onde quero chegar com isso? E dentro de mim a resposta sempre foi: quero ser muito boa no que faço. Por isso, desde o dia zero até hoje, estou em modo de aprendizado com todos que podem agregar valor em minha trajetória profissional. Sempre fui aprendendo que o grande desafio está no marketing e tive de aprender muito, ano após ano, e a prática nos diversos mercados me ensinou muito também.
Falando em marketing, como oferece seus produtos em hotéis e restaurantes?
Tenho 100% de certeza de que o que ofereço é único, que faço tudo com muita responsabilidade, desde a germinação até a colheita, pois estou produzindo alimento e, como me disse um colega, saúde. Nesse sentido, tem que ser um produto feito 100% conscientemente e é isso que eu falo e demonstro para os meus clientes. A isso acrescento a durabilidade pós-colheita, que chega a mais de 15 dias em perfeitas condições, fazendo com que o conjunto forme uma combinação irresistível.
Como docente, você ministrou um grande número de cursos. Como surgiu, montou e como eles acontecem?
Tive a sorte de encontrar minha paixão profissionalmente e poder colocá-la em prática. Então, senti que tinha que fazer minha parte e retribuir um pouco de tudo que sempre recebi com as pessoas lindas que interagi nesta atividade. Foi aí que surgiu a necessidade de começar com cursos, workshops e formações, que na sua maioria são ministrados através da minha plataforma online, uma vez que participam pessoas de diferentes localizações geográficas.
No entanto, devo confessar que o que mais gosto é quando são presenciais: gosto muito de lidar de perto com as pessoas, as práticas e a logística do que implica a realização destas formações. Trabalhei muito com uma empresa mexicana (Hidronova) nesta área, que me deu muita experiência e com um colega de altíssimo nível acadêmico do Peru, o engenheiro Carlos Hidalgo.
Aí, chegou um momento em que decidimos nos mudar para os Estados Unidos, mas primeiro eu queria retribuir um pouco de tudo que minha linda Bariloche sempre me deu. Foi lá que organizei um curso internacional de hidroponia. Sempre tive uma relação muito boa com o INTA local (Instituto Nacional de Tecnología Agropecuaria, como a Embrapa no Brasil), por isso tive o privilégio de poder fazê-lo nas suas instalações e com o seu apoio. Tivemos quase 100 participantes de todo o país. Foi reconhecido como de interesse municipal e recebeu muitos empresários, amadores, curiosos, o prefeito, o ministro da Agricultura de Rio Negro e palestrantes do México e Peru.
Não moro em Bariloche há mais de quatro anos, mas voltei a visitar e gerei treinamento em estufas da região, continuando o contato com a comunidade. Quero colaborar com minha humilde experiência para que cada vez mais produtores sejam incentivados a continuar desenvolvendo esta atividade e que Bariloche tenha produtos frescos e locais.
O que você recomendaria para quem quer começar?
Isso vai depender de quão longe quer ir. E mesmo que tenha todos os recursos ou capital para investir, o mais importante é que primeiro saiba do que se trata. A agricultura é muito particular, trabalhamos com seres vivos que não ficam parados esperando por nós, eles crescem e nos expõe permanentemente a situações imprevistas que temos de aprender a gerir. Eu amo e incentivo muito essa prática, mas nunca me canso de falar para as pessoas gastarem um tempo aprendendo primeiro do que se trata.
Onde você mora agora e como é hoje um dia em sua vida?
Atualmente moro na Flórida, EUA, com minha família, onde continuo com meu projeto de treinar e assessorar empreendedores nessa técnica. Nos EUA, criamos e fundamos nossa própria fazenda hidropônica familiar, conhecida como Patagonia Green Leaf, que homenageia as terras de onde viemos e aprendemos esta maravilhosa forma de crescer.
Sonhos verdes nas Ilhas Canárias
Os ensinamentos de Flavia vêm dando frutos e mudando a vida de outros empreendedores. Maribel Jerez é barilocheña e há sete anos viu o cultivo hidropônico pela primeira vez. Ficou fascinada. “Adorei a ideia de economizar água”, lembra. Queria estudar pela internet, mas sempre me faltavam informações. Essa assessoria não trouxe resultado para mim, mas em janeiro de 2020 descobri um curso presencial em Bariloche e falei “isso é pra mim”. Foram três dias intensivos, onde conheci a Flavia. O que eu mais gostei foi o acompanhamento. Inicialmente o projeto era de autoconsumo, mas ela me explicando o dia a dia e o plano mudou”.
O que para Maribel era um plano complementar tornou-se, com a chegada da pandemia, um projeto muito mais amplo. “Pude dedicar muitas horas e sempre falta espaço, por isso expandimos de quatro tubos para oito e depois 12, todos com quatro metros de comprimento”, lembra ela, hoje dona de um empreendimento nas Ilhas Canárias.
“No inverno, era muito difícil para nós porque morávamos na estepe de Ñirihuau (nos arredores de Bariloche). Decidimos parar de produzir porque a natureza nos obriga: a água congelou mais de uma vez e o vento destruiu duas estufas”, conta à Forbes.
Segundo ela, o custo do material é alto porque se faltar alguma coisa não dá para começar. “Mas eu tenho um grande parceiro, que é meu marido, que inventou muitas coisas para mim. Na verdade, usávamos vários canos partidos que encontrávamos espalhados, eu cortava e juntava e já tinha mais um”, conta com um sorriso.
Em linhas gerais, são necessários tubos de PVC 110, bombas, temporizador, mangueiras, torneiras, tanques, a solução e as sementes. “O espaço físico é o de menos. Porque podes começar pela parede onde o sol bate na tua casa, mas depois a experiência te empurra para a expansão. Conhecimento é essencial porque parece que não, mas é preciso muito estudo em diversas áreas. Hoje, formulei uma solução para as plantas, mas já comprei pronta em Bariloche e depois não conseguia saber se a fórmula estava correta ou precisaria modificá-la para uma safra específica”, revela.
Maribel é mãe de quatro meninos e mora com Andrés Bartomeo, seu companheiro, em Tenerife (província de Córdoba, a 1.500 km), fugindo do frio patagônico. “Procurando opções de trabalho me deparei com dois amigos parceiros que haviam parado um projeto que tentavam realizar com o pouco conhecimento tinham e procuravam alguém para cobrir essa parte. Deu certo. Eles estavam esperando por nós!”, diz ela, feliz.
Atualmente, Maribel possui uma estufa ativa de 2 mil metros quadrados; mil estão em produção com 31 pirâmides de 12 tubos por 11 metros de comprimento. “São 20 mil plantas em diferentes estágios de crescimento. Andrés ficou encarregado de colocar tudo em condições de uso e fazer os ajustes técnicos e sempre estamos melhorando alguma coisa”, afirma.
Em termos de vendas, como também disse Flavia, o que eles promovem é sabor e frescor. “A parte comercial é feita pelo Andrés e o mais importante é apresentarmos nosso produto com raízes para que a planta viva seja levada até o cliente e que tenha durabilidade. Sem falar nas cores que são bem mais vivas”, afirma.
Hoje, Maribel está longe de sua terra natal, Bariloche, em meio a um clima quente, mas não esquece suas origens. Ela levanta cedo para preparar o chimarrão e acordar os meninos para a escola. Assim que Andrés os leva, ela já sai para a estufa. “Lá, eu controlo os tanques para ver o ph e a condutividade, verifico se as 31 pirâmides estão sendo irrigadas e, dependendo do dia, se temos colheita pela manhã ou à tarde”, disse à Forbes.
Ela nunca parou de estudar, porque é a chave, diz. E ainda acrescenta um detalhe: “resolvemos doar nosso sistema hidropônico de Bariloche para a Fundação San José Obrero, que trabalha com crianças. Um dia surgiu uma conversa com nossos filhos, quando perguntamos o que achavam se déssemos a eles e, sem hesitar um minuto, concordaram e ficaram muito entusiasmados com isso. Mais tarde, quando este projeto das Canárias chegou até nós, refletimos: quando se faz algo de coração, sempre volta”, sintetizou. Agora, ela e sua família estão em Tenerife Sur, dando vida à Kanaralia, sua marca de alimentos hidropônicos.
*Reportagem publicada originalmente na Forbes Argentina
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