A primeira cena da série “Quando Ouvi a Voz da Terra” mostra uma mulher escovando seu cavalo. Sua voz dá início à saga, dizendo “pra mim não existe lugar melhor do mundo que a Orvalho das Flores …..” se referindo a uma fazenda de Mato Grosso que é referência de bem-estar animal no país. Nesta semana, foi ao ar o quarto episódio da temporada, que é uma sequência do documentário de mesmo nome, de 2021. A obra poderia abordar qualquer outro tema, mas é da essência do agro que ela trata, uma raridade no cinema brasileiro e uma aposta para mostrar histórias a um público que raras vezes conhece profundamente as coisas do campo.
Na frente das câmeras, a fazendeira Carmen Perez, colunista da ForbesAgro e na lista das 100 Mulheres Poderosas do Agro, sai pelo Brasil mostrando vicissitudes, jornadas e apegos à natureza e suas generosidades, que vão de uma chocolateira do Pará a queijos, não das espetaculares fazendas de Minas Gerais, sempre retratadas, mas da casa da Rita, uma pequena queijeira de Sinop, no coração de Mato Grosso que tem a soja como símbolo.
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Por trás, das câmeras, onde a mágica acontece, está o cineasta Nando Dias Gomes, na área desde 1995 e diretor a partir de 2007, fazendo filmes documentais e comerciais para Amazon, Decoar, entre outros. Com dezenas de horas de filmagem e uma enxurrada de ideias, Dias Gomes vai traduzindo as coisas do campo – ou agronegócio, como queira – em poesia, entretenimento e informação. Sua sensibilidade faz com que o telespectador deguste um assunto técnico, cheio de números e máquinas, em uma história universal e inspiradora. Justamente porque fala de gente. (Em tempo, Nando Dias Gomes não guarda parentesco com Alfredo de Freitas Dias Gomes, o Dias Gomes dramaturgo e autor de telenovelas como O Bem Amado e Roque Santeiro, mas tem a mesma paixão pela arte da imagem.)
A série, que tem na produção a jornalista Flávia Tonin, vem com quatro mini-docs de 15 minutos, começou em 26 de outubro e teve seu último episódio lançado nesta quarta-feira (14), no Youtube. Além de chocolate e queijo, a série se serve do café e do mel para falar de temas universais, como a liderança, tradições, maturidade e trabalho, tudo em harmonia com a natureza e o bem-estar dos animais, do homem e do meio ambiente.
Nos últimos 10 anos, o urbano Dias Gomes já havia feito algumas incursões em temas do agro. Como em 2012, quando mostrou o trabalho de um grupo de pecuaristas do Cerrado, a Liga do Araguaia, uma referência em pecuária sustentável e pegada de carbono. “Eu vi a produção por outro prisma, diferente do que conhecia do agronegócio. Essas experiências foram me enchendo de esperança.”
Em 2019, a convite do cineasta e também pecuarista Caio Penido, ele participou da série “Homens e Mulheres da Terra”, percorrendo 20.000 km por fazendas. Ele também está em documentários, como “Conflitos do desenvolvimento” e no projeto “Vidas, Paixões, Concreto e Metal”, sua mais recente incursão, uma imersão na cidade de São Paulo para mostrar a ocupação dos espaços urbanos. Nesta semana, com a série entregue ao público, a Forbes conversou com Dias Gomes. Confira:
Forbes: Lá no início da sua ligação com temas agro, o que queria com essas andanças por fazendas?
Dias Gomes: Queríamos mostrar histórias como ninguém mostrava. Todos gravam a produção (gado), a produção (plantas), mas ninguém falava que a fazenda tem rio, reserva e mata. No detalhe, quebramos um paradigma ao colher os depoimentos dos produtores em meio a natureza, e não, em meio aos bois e máquinas.
Forbes: Como foi o começo da sua relação com o agro documental?
Dias Gomes: Era uma vontade que vinha crescendo a partir da primeira vez que pisei no Mato Grosso. Encontrei um universo muito diferente do que eu imaginava. E era preciso mostrar esse Brasil diferente. Por exemplo, todo mundo pensa que a fazenda é lugar de plantar milho e gado, mas a fazenda acaba sendo um todo.
Quando entendi esse significado em profundidade, queria apresentá-lo dessa forma mais ampla. Essa realidade é muito forte nas falas, mas fica pouco clara ao ser retratada para as pessoas. Lembro bem que em uma das primeiras conversas que tive com um presidente de sindicato rural, que me marcou muito, ele disse que “só quem passar um dia no campo com um fazendeiro, não consegue voltar para a cidade da mesma forma”. Pois complemento porque, além do trabalho, ele acaba enxergando que as pessoas são como ele, de carne e osso, com desafios e demandas. Então, começou essa vontade de criar conexão por meio da poesia e do storytelling.
Forbes: Dessas andanças e gravações no campo, o que o impressionou e tocou o seu coração?
Dias Gomes: O produtor rural tem um papel fundamental na história da humanidade. Há 12 mil anos, ele começou a cultivar a terra, cuidar dos animais, organizar-se e deixar de ser nômade. Ao dominar o cultivo do alimento alcança a segurança alimentar e cria cidades. Quando comecei a viajar e ver as pessoas produzindo de uma forma correta e preocupada, aquilo bateu em mim como uma luz. Era minha missão contar essa história com as ferramentas do cinema. Fazer o que vejo aqui, chegar do lado de lá. Ao descobrir a minha missão, percebi um apreço muito grande pelos produtores.
Esse cara que foi um herói no início da sociedade, passa a ser visto como um vilão e isso me incomodou. Com o cinema, eu posso ter uma cena tocante e poética e quem está do outro lado vai materializar as ideias do filme. Por isso, toda vez que estou no set de filmagem, estou buscando esses fragmentos de humanidade: em cada gesto, em cada palavra e em cada momento.
Forbes: A comunicação do agro tem essa percepção como? Colocar em prática é algo fácil?
Dias Gomes: O agro tem um marketing fantástico! Eu acho incrível sua comunicação que, por natureza, é B2B (business to business). Isso ele faz muito bem, ao falar para seus pares e parceiros de negócio, seguindo um caminho informativo, direto e assertivo. A questão é que, para se comunicar com o público em geral, não é preciso assertividade, mas de arte.
É preciso tocar o coração. Para levar essa mensagem, em nosso projeto, eu quis misturar tudo isso, contando histórias de uma forma subjetiva, pois preciso que as pessoas mergulhem no universo do agronegócio pelo coração. O primordial é mostrar que todos somos humanos, ou, seja da mesma espécie, com os mesmos medos e anseios. As mesmas dores e felicidades. A gente vive no mesmo planeta! Então, nos meus projetos quebro essas divergências, buscando um conteúdo plural, ou seja, para todos e não para um determinado nicho.
Forbes: A série consegue em que medida materializar esse caminho plural de comunicação?
Dias Gomes: Foi a união de três pessoas com a mesma vontade. Eu tinha a oportunidade de estar ao lado de uma produtora, como a Carmen Perez, totalmente aberta para contar a sua história para o mundo. Tanto o documentário como a série são muito sensíveis, porque não mostram uma fazendeira. Mostra uma mulher, mãe, uma pessoa com suas dores e felicidades. Uma mulher que, por suas escolhas impacta, de forma ímpar na vida dos animais e das pessoas que trabalham com ela.
Essa protagonista, “por acaso” trabalha com produção agropecuária e “por acaso” com bois, mas as questões abordadas no cenário agro são universais. Me emociona a lembrança de quando surgiu essa oportunidade, pois vi que teria a chance de, com o meu ofício e elementos do cinema, mostrar o Brasil que é diferente, é humano, que se preocupa com os animais e com a conservação.
Forbes: Como você vê o agro antes e depois do documentário?
Dias Gomes: O agronegócio brasileiro está passando por um momento importante para ele. Geopoliticamente, o Brasil é uma potência agroambiental, ou seja, para produzir alimento e preservar. O alimento que é produzido no Brasil tem uma pegada de carbono muito menor, pelas florestas que a gente tem. Isso incomoda e apanhamos por todos os lados.
Nessa hora, o que é preciso? Mostrar o país de forma mais abrangente, atingir o coração do mundo, mostrando o que o Brasil produz com qualidade, respeito à natureza e aos animais. Nesse sentido, o documentário Quando Ouvi a Voz da Terra é um divisor de águas, pois tem a mensagem certa, no momento certo. É a história que precisa ser contada.
Esse filme vem somar esforços para abrir os olhos do mundo para como, de fato, o Brasil produz. A cultura e a arte são as melhores formas de levar o conceito ao grande público. Por essa via, se quebram barreiras. Nesse sentido, o documentário cumpre seu papel e com muita verdade e seguirá cumprindo, pois é uma obra perene.
Forbes: Especialmente no projeto deste ano, do que você mais gostou de fazer como diretor?
Dias Gomes: O olhar sensível que a Carmen tem para falar e mostrar a produção me tocou, como toca o coração de quem assiste. A série é muito isso. Por cenário bem diferentes, há uma mulher, uma mãe que produz, sonha, sobe em cavalo, cura bezerro. Ela vive o campo ao lado marido. Isso é muito forte e cria conexão com as pessoas. Quando olho para a Carmen e também para os demais personagens que estão nos episódios, como o Sr. Carlos, Dona Nena, a Tuca e a Rita, retomo a esperança na humanidade, por essa veracidade e por cumprirem seu papel no dia a dia. A gente precisa resgatar essa confiança no ser humano.
Forbes: Qual foi o principal desafio nas filmagens da série?
Dias Gomes: Foi ser o mais generoso possível com a história que se tem na mão, porque o risco é muito grande. É preciso acertar o timming, a trilha, a condução da história. Como um bolo, se você errar a mão, ele desanda. O material filmado é gigante e temos que reduzir, mas manter a essência. Deixar, de fato, o que representa cada momento de cada pessoa e cada ideia. Essa preocupação e a noção de responsabilidade que temos com as histórias das pessoas é o principal desafio. Escolher o que transmite o que a pessoa é, sem distorcer e apenas conduzindo a história.
Forbes: Nesse tipo de comunicação, o que considera ser a melhor linguagem para o público de fora do agro?
Dias Gomes: Eu assisto tudo no cinema e me conecto com o personagem e com a história. O que muda para mim, quando estou retratrando o agro? Somente o cenário. A condução da história é a mesma, um clássico no cinema. A atenção se prende nos primeiros dez minutos, pois você tem que saber quem é o personagem, por que está ali e o que ele quer fazer. Isso em qualquer história. Sejam histórias do campo ou da cidade, elas precisam dos mesmos elementos.
Existem duas coisas no filme: conteúdo e a forma. O conteúdo pode mudar, mas a forma segue a mesma dinâmica narrativa. E, quando faço um filme, quero que ele seja para o público mais amplo possível, para que muitos acessem aquela história. E quem assiste está interessado em entender o personagem, sua trajetória, anseios e dificuldades. Usando o exemplo do “Quando Ouvi a Voz da Terra” ele cativa pelas imagens, música, histórias e ideias daquelas pessoas. Em um momento estou na Serra da Mantiqueira, em meio ao café, depois na Serra do Roncador, em Mato Grosso, mas entrando no universo dessas pessoas.
Forbes: Se você tivesse a oportunidade de ser um produtor rural, o que você escolheria?
Dias Gomes: Eu gostaria de trabalhar com a cria de vacas, porque essa história do nascimento é muito bonita. Há a criação da vida. Ver essa força da natureza, de gerar uma vida, é forte e muito marcante.
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