Recentemente, a FDA (Food and Drug Administration), nos EUA, divulgou sua carta “green light” em resposta à submissão sobre segurança, a pedido da empresa de carne biotecnológica Upside Foods, para frango cultivado em células. A Upside é uma empresa de tecnologia de alimentos, com sede em Berkeley, Califórnia. Muitos meios de comunicação relataram, falsamente, a notícia como “aprovação” ou “autorização”, apesar do FDA dizer: “a consulta voluntária pré-comercialização não é um processo de aprovação”.
A Upside Foods chamou a carta de “sinal verde”, e que muitos meios de comunicação repetiram, embora isso também não retrate com fidelidade a medida, pois ainda há um longo caminho a percorrer, tanto para a aprovação e supervisão da FDA quanto do USDA (Departamento de Agricultura dos EUA). (As duas agências compartilham jurisdição e o FDA lista sozinho 8 etapas, incluindo a carta pré-mercado, enquanto o USDA lista 7 etapas.)
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Mas, independentemente de quão perto a aprovação regulatória possa estar para a carne cultivada em células ou, nesse caso, a viabilidade científica, se e quando qualquer produto estiver pronto para ser vendido comercialmente, a indústria nascente enfrenta desafios de mercado significativos sobre os quais poucos parecem estar falando.
Os vários desafios enfrentados pela carne de origem vegetal no mercado mostram algumas pistas sobre o que está por vir para as empresas de carne biotecnológica.
Os preços continuarão muito altos
As carnes à base de plantas já estão enfrentando muitos desafios ao competir com a carne animal no preço, e a cultura de células é muito pior. Continuamos ouvindo sobre “escalar”, mas nenhuma empresa comercializou nada ainda. Há relatos de porções sendo oferecidas em restaurantes em Cingapura há dois anos, mas elas não se sustentam como uma comercialização séria no mercado.
Ainda não existe uma fábrica em larga escala, apenas uma instalação piloto construída pela Upside Foods que, segundo a empresa, pode produzir apenas 22,6 toneladas de “produto acabado”. Em abril deste ano, a empresa levantou US$ 400 milhões (R$ 2 bilhões na cotação atual) para construir uma fábrica para produzir em escala comercial. Mas, no início de dezembro, o CEO, Uma Valeti, disse que ainda está procurando locais e que espera “que os estados nos procurem para o empreendimento.” Não parece muito iminente ou promissor.
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Portanto, se a única empresa a receber qualquer aprovação do governo nos EUA ainda não começou a construir uma fábrica para processar produtos em escala, a carne biotecnológica parece muito longe de uma comercialização viável. Isso significa que as empresas farão pequenos lotes, o que continuará muito caro. Isso poderia explicar por que a Upside Foods está se aproximando de chefs sofisticados e falando sobre degustações em restaurantes. Embora essa possa ser uma maneira válida de testar o sabor de alguns produtos, também é um sinal claro de que algo próximo à paridade de preços com a carne animal está muito longe.
O próprio Valeti reconheceu isso recentemente, dizendo: “com o tempo, esperamos que nossos produtos estejam em pé de igualdade com a carne convencional, mas isso levará de 5 a 15 anos”. Tradução: ele não tem ideia de quanto tempo, se é que esse tempo possa ser levado em conta.
Dados os desafios científicos atuais de transformar as culturas de células em algo semelhante à carne e o alto custo dos produtos “somente carne biotecnológica”, muitas empresas estão falando em fazer produtos híbridos, o que significa combinar culturas de células com ingredientes à base de plantas.
Mas isso provavelmente não reduzirá os preços o suficiente, já que a categoria de carne animal é tão vasta, com tantas opções para escolher. Mesmo nestes tempos inflacionários, os consumidores estão simplesmente “saindo” de carnes mais caras para as mais em conta, trocando bifes por hambúrgueres ou costeletas de porco por cachorros-quentes.
Paul Wood, especialista em tecnologia de alimentos, não vê o problema do preço resolvido tão cedo. “Continuo conversando com várias empresas e ainda não estou convencido de que estejam perto de um custo razoável de produtos prontos para a venda”, afirma Wood.
O difícil espaço de prateleira no varejo
Se, e quando, as empresas de carne biotecnológica puderem produzir comercialmente em escala, mesmo como produtos híbridos, elas ainda enfrentarão grandes batalhas no varejo, onde o espaço nas prateleiras é extremamente competitivo, especialmente no corredor de carnes.
A Beyond Meat e a Impossible Foods conseguiram ocupar um espaço limitado na seção de carnes desde seus respectivos lançamentos no varejo, mas esses produtos tendem a se perder entre toda a carne animal, pois pode ser difícil manter uma posição de destaque ao longo do tempo. A maioria dos departamentos de carnes é simplesmente confuso. E, no entanto, as empresas de carne biotecnológica acreditam que, de alguma forma, farão um trabalho melhor se posicionando e se destacando no competitivo e desordenado corredor da carne?
Valeti, da Upside Foods, recentemente criticou a Beyond Meat e a Impossible Foods por fazer “produtos vegetarianos”, como se isso fosse uma coisa ruim. Ele foi questionado sobre a localização da loja por um repórter que observou como Beyond e Impossible conseguiram espaço nas prateleiras no corredor de carnes; e Valeti aproveitou a oportunidade para, literalmente, distanciar seus produtos ainda a serem produzidos desses dois outros produtos, dizendo: “São células de frango que estão se transformando em carne. Então, esperamos que seja posicionada em um supermercado ou em um corredor de mercearia exatamente onde os produtos à base de carne são vendidos, sejam congelados, refrigerados ou frescos, não ao lado de produtos vegetarianos porque isso não é vegetariano.”
Talvez o CEO da Upsides estivesse confundindo a colocação de produtos Beyond e Impossible com a “seção vegetariana” de muitos supermercados onde, é verdade, esses produtos mais “old school” tendem a ser direcionados a um nicho de público vegetariano.
Mas, ainda assim, como esses novos produtos biotecnológicos se posicionarão para se destacar tanto da carne animal quanto dos “produtos vegetarianos” que Valeti não quer ter perto, mesmo que os produtos Beyond e Impossible já estejam na seção de carnes?
Além disso, até mesmo as empresas de carne que aderiram ao movimento baseado em vegetais estão vendendo suas alternativas de carne na seção de carnes, ao lado de Beyond e Impossible. Por exemplo, a gigante da carne Smithfield vende sua marca “Pure Farmland” no corredor de carnes, enquanto grandes varejistas como KrogerKR +0,5% passaram a vender sua própria linha baseada em vegetais de marca própria, uma enorme lista que vai de fatias de delicatessen a salsichas e frango.
Em outras palavras, a seção de carnes já está superlotada, principalmente com carne animal, mas também com alternativas à base de plantas, tudo impulsionado por empresas com poder significativo sobre o que é colocado nas prateleiras das lojas, incluindo varejistas que vendem suas próprias marcas.
Agora vêm as carnes cultivadas em células, provavelmente híbridas. Parece altamente provável que produtos híbridos de carne biotecnológica se percam completamente na seção de carnes. Ou seja, no mínimo, ninguém parece ter um plano viável para competir nas prateleiras.
Os consumidores não vão entender
Quase ninguém, fora da câmara de eco de vegetarianos, investidores e repórteres, ouviu falar de carne biotecnológica, que também atende por nomes mais amigáveis, como “carne cultivada”, o eufemismo preferido da indústria.
Estamos falando de explicar aos consumidores uma categoria de alimentos totalmente nova e extremamente complicada de entender o que é. A maioria das pesquisas com consumidores que tentam prever a aceitação são influenciadas pelas empresas que pagaram por elas.
Por exemplo, a manchete deste comunicado à imprensa resume: “Mais de um terço dos consumidores dos EUA adotará carne cultivada quando lançada, diz nova pesquisa da Future Meat Technologies”. Os resultados são tão confiáveis quanto uma manchete que diz: “99% dos consumidores vão preferir a carne de animais, diz nova pesquisa da Tyson”.
Outra razão pela qual as empresas de carne biotecnológica estão recorrendo a ingredientes à base de plantas é o greenwashing: para ajudar a “explicar” aos consumidores o que diabos é esse produto. Isso porque, pelo menos a maioria dos consumidores já ouviu falar de ervilhas e soja, mas quase nenhum ouviu falar de carne cultivada em laboratório e, se ouvissem, provavelmente ficariam desanimados com isso. Este é um grande problema conhecido como “fator ick”, que tende a se basear nas emoções, não na lógica, tornando-o ainda mais difícil de superar.
Algumas empresas afirmam estar tornando os produtos à base de plantas “mais saborosos”, por exemplo, usando gordura cultivada em células como aditivo aos produtos à base de plantas. É bom conferir como um analista colocou, usando os eufemismos da indústria biotecnológica de alimentos: “[Os produtos híbridos] podem ajudar a deixar os consumidores confortáveis com a ideia de fermentação de precisão ou células cultivadas gradualmente. Pode ser mais fácil para as pessoas experimentar um hambúrguer à base de plantas com gordura livre de origem animal do que experimentar um produto inteiramente cultivado”.
Talvez sim, mas como os produtos híbridos se sairão, considerando o quão confusos eles podem ser? Os consumidores tendem a querer um ou outro, “carne de verdade” ou uma alternativa, não ambos. Quando a Tyson tentou lançar uma linha de produtos híbridos que combinava carne bovina com ingredientes vegetais, o negócio não deu certo. O “hambúrguer misto” foi retirado do mercado logo após o lançamento fracassado. E a Tyson não é exatamente uma startup.
Vai ser muito confuso explicar o que é esse produto em um supermercado movimentado, onde a maioria dos estudos mostra que os consumidores levam 13 segundos para decidir o que comprar.
América funciona com asas de frango
Enquanto isso, a indústria da carne animal segue fazendo seu trabalho. Com uma vantagem de mais de 100 anos em transformar a carne animal em uma mercadoria a preços que todos os consumidores podem pagar, a Big Meat Machine não mostra sinais de desaceleração.
No período de 52 semanas encerrado em maio de 2022, as vendas de carne no varejo dos EUA ultrapassaram US$ 85 bilhões (R$ 445 bilhões), um aumento de 5,8% em relação ao ano anterior. Na verdade, de todas as categorias de carne, as vendas de frango lideraram, aumentando 10,6%, chegando a US$ 15 bilhões (R$ 78,5 bilhões).
Além disso, na categoria de carne fresca, as asas de frango tiveram um ganho impressionante de 21% nas vendas em dólares. Nada impede os americanos de amarem suas asas de frango. E, no entanto, ninguém está fazendo asas de frango em laboratório. É por isso que os problemas relacionados à produção de carne não serão resolvidos pela ciência dos alimentos ou pelos consumidores, mas pela dinâmica de consumo. E isso não vai mudar, independentemente do que qualquer empresa de carne biotecnológica diga ou faça.
* Michele Simon é colaboradora da Forbes EUA, mestre em saúde pública pela Yale University e graduada em direito pela University of California.
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