Poucos lançamentos de remédios causaram tanto furor quando a chamada pílula antirressaca. Ela chegou ao mercado internacional em julho, no Reino Unido. Todos os estoques esgotaram no primeiro dia de venda. Por quê? Porque a pílula promete acabar com aqueles sintomas desagradáveis sentidos no dia seguinte ao consumo de álcool: dor de cabeça, mal-estar (às vezes enjoo), falta de energia.
O remédio, que recebeu o nome de Myrkl e deve chegar em breve ao Brasil, garante quebrar o álcool no intestino antes que ele chegue ao fígado. É justamente no fígado que a molécula de álcool é quebrada em algumas substâncias que seguem pelo sangue até o cérebro para causar uma sensação agradável, mas também em outras substâncias que causam o mal-estar da ressaca.
Eu sou especialista no uso de álcool e drogas. Tenho de confessar: há 40 anos, desde que me formei, venho escutando duas promessas na área médica: uma vacina que impeça alguém que faz uso de drogas de sentir os efeitos dela e, portanto, de tornar-se dependente, e algum remédio que não cause embriaguez. Essas alternativas até agora não tinham saído do papel. E não era por falta de vontade de estudar isso, porque muita, muita pesquisa foi e é feita nesse sentido. Nada parecia conseguir cumprir essas promessas.
Até que foi anunciada essa nova pílula. Tenho acompanhado as notícias e tenho muita curiosidade em ver, na prática, os resultados dela. Parece-me contraditório um remédio que impeça a ressaca (um dos efeitos colaterais de quem ultrapassou um pouco o consumo moderado) e não impeça o efeito “depressor” do álcool no cérebro. Digo isso porque, há milhares de anos, as pessoas buscam o álcool porque ele tem efeitos no cérebro que as deixam menos inibidas, menos travadas, causados por esse efeito “depressor”.
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Sejamos claros. Não dá para impedir os efeitos colaterais sem tirar também esse efeito, digamos assim, gostoso do álcool, motivo pelo qual as pessoas bebem. A imensa maioria das pessoas bebe de forma moderada justamente em busca disso.
A questão que me deixa curioso é: se o comprimido evita a ressaca, mas também reduz os efeitos da bebida no cérebro, por que então as pessoas que querem continuar bebendo fariam uso dessa pílula? Não seria melhor trocar uma bebida por uma similar sem álcool, se, em tese, o efeito seria mais ou menos o mesmo?
Outra questão que levanto é a seguinte: se alguém está plenamente decidido a beber em busca desse efeito mais solto que o álcool promove, mas vê esses efeitos serem reduzidos tremendamente pelo comprimido, não se correria o risco de termos pessoas que eventualmente aumentarão o consumo de álcool até que se sintam levemente embriagadas? Vejo nisso um potencial efeito perigoso desse novo remédio.
Evidentemente, a ciência avança e, se de fato o Myrkl funcionar e trouxer benefícios, só temos que comemorar. Até lá, eu penso que a melhor postura é de prudência, até que saiam mais pesquisas a respeito dessa novidade.
Dr. Arthur Guerra é professor da Faculdade de Medicina da USP, da Faculdade de Medicina do ABC e cofundador da Caliandra Saúde Mental.
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