Era uma quarta-feira de sol, em agosto de 2019. Como fazia todas as manhãs, levei minhas filhas para a escola. No rádio, tocava uma de nossas músicas favoritas, “Dog Days Are Over”. Às 8h15, cheguei ao escritório. O cheiro de café recém-coado tomava conta da recepção.
A primeira pessoa que encontrei foi a Priscila, responsável pela limpeza. Ela me cumprimentou de um jeito que só ela sabia fazer, com um largo sorriso, de quem deixou todos os seus problemas do lado de fora: “Hoje o dia promete, Lu”. Prometia mesmo, mas não da forma como eu imaginava.
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Às 11h, meu celular toca. Por alguns instantes, sinto o meu mundo parar. Cada detalhe, daquela manhã – as cores, os cheiros, os sons – continua ecoando em meus pensamentos, como se aquele quatorze de agosto nunca tivesse chegado ao fim.
Desde os 15 anos, meu irmão, Fernando, era um habitual frequentador de clínicas de reabilitação para dependentes químicos. Ao longo dessa longa e sofrida batalha, aprendi que a família é um dos pilares essenciais nessa luta, e também um dos grupos mais atingidos por ela. Para cada usuário de drogas, existem pelo menos mais quatro pessoas afetadas, segundo dados da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). São quase 28 milhões de brasileiros codependentes e que, assim como o usuário, também necessitam de acolhimento e tratamento.
Acredito que nós somos as nossas histórias, e eu não teria como escapar nem me esconder da minha. Por muitos anos, não me sentia confortável em falar sobre o assunto, nem com os amigos mais íntimos.
Tinha vergonha e me sentia fragilizada emocionalmente. Aos meus olhos, a doença do meu irmão me deixaria exposta, diante de uma sociedade que não admite vulnerabilidades. Mas é impossível mudar os eventos, lutando contra aquela realidade que me foi imposta.
“A melhor coisa que você pode fazer é dominar o caos em você. Você não está sendo jogado no fogo, você é o fogo”, disse Mama Índigo. Foi com essa mentalidade que sobrevivi aos eventos daquela manhã. Eventos que ressoam até hoje e que me transformaram profundamente.
Com muita terapia e uma rede de apoio muito poderosa, tenho conseguido transformar a minha dor em fortaleza. E, ao longo da minha jornada, tive que desenvolver algumas habilidades que influenciaram não apenas a pessoa que me tornei, mas a profissional que sou hoje. Trabalho é uma parte da vida – e essa dor que vivi trouxe algo para a postura que adotei em minha carreira.
Trouxe disciplina, já que meu maior desejo era afastar o que a dependência significava para mim: caos. Me tornei uma pessoa extremamente disciplinada com horários, compromissos, entregas e, principalmente, em relação às pessoas.
Trouxe resiliência, pois conviver com um familiar adicto é ter que desenvolver um grau altíssimo de resiliência. No caso do meu irmão, foram mais de 35 internações. Em cada uma delas, a esperança de que, daquela vez, daria certo. Desistir não era uma opção.
Desenvolveu em mim a empatia: é impossível não se colocar no lugar de pais e de tantos outros familiares que conheci e acompanhei ao longo dos muitos anos da doença do meu irmão. Incluindo os profissionais comprometidos em nos ajudar nos momentos mais sensíveis, como enfermeiros, médicos, psicólogos e psiquiatras.
E, por fim, me trouxe humildade e a capacidade de reconhecer minhas limitações. Aprendi a valorizar as pequenas conquistas, acolhendo quem sou. Pés no chão e cabeça na lua.
Na trajetória ao lado do meu irmão, também aprendi que cada um reage de uma maneira diferente a uma situação trágica como essa. E que a genética tem um papel muito importante em como você irá transformar sua dor em força.
Muitos anos depois, como estudante de pós-graduação em neurociências, comecei a entender que fatores alheios ao ambiente e ao convívio social são também determinantes no condicionamento do comportamento. É o caso de hormônios como a ocitocina que, junto de outros neurotransmissores, reduz níveis de ansiedade nas interações sociais, além de estar relacionada ao desenvolvimento de confiança, altruísmo e empatia.
Voltando àquela ligação, pedi licença a todos que estavam comigo na reunião e saí para atender o celular. Com a voz entrecortada por soluços, minha mãe só conseguiu dizer “ele morreu, Luli. O Fernando morreu.”
Caminhei com passos apertados até o banheiro. As mãos tremendo, o coração pulsando forte. Tranquei a porta e tive uma crise de choro. No espelho, vi aquela adolescente frágil e insegura, que mentia para suas amigas sobre a constante ausência de seu irmão mais velho. Contar que o Fer estava passando uma temporada na casa da nossa tia parecia bem mais simples do que encarar a dura realidade sobre o fato de que o meu irmão era um dependente químico, que precisava de ajuda.
Naquela manhã, internado em um hospital, depois de uma de suas recaídas, cometeu suicídio, aos 45 anos.
Demorou um tempo até que eu entendesse que crescer codependente traz implicações nem sempre tão óbvias.
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Uma delas é sentir-me responsável em “resolver” a vida das pessoas com quem convivo. É uma luta diária assumir que algumas questões (na verdade, a maioria delas) estão fora do meu controle, e que não podem ser resolvidas por mim. Por mais luz e otimismo que eu queira emanar, saber o meu limite e não cruzar algumas linhas é uma forma de me tornar um pouco menos codependente.
A minha mãe, por exemplo, conseguiu transformar sua imensa dor em missão de vida. Ao longo de anos, ajudou meu irmão a escrever uma apostila, em que contava seus medos, batalhas e pequenas vitórias no enfrentamento de sua dependência química. Minha mãe, como forma de deixar um legado de tudo o que a família viveu, ajudou a fundar uma comunidade terapêutica para adictos em situação de vulnerabilidade.
Não poderia terminar este artigo sem falar sobre gratidão. Em mim, nada é mais intenso do que o sentimento de gratidão por ter nascido saudável. Por ter conseguido, ao longo da vida, ter acesso a ferramentas que muito me ajudaram a lidar com tanta raiva, decepção, frustração e tantos outros sentimentos nutridos por quem precisa estar em alerta o tempo todo. E sem saber o que esperar do dia seguinte.
Independente do problema que esteja passando, lembre-se de que você não está sozinho.
Um dia de cada vez.
Luciana Rodrigues é CEO da Grey Brasil, conselheira do board da Junior Achievement, membro do conselho da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e do comitê estratégico de presidentes da Amcham.
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