Foi preciso uma batida policial, uma rara rendição voluntária e quase 80 anos para recuperar quatro desenhos ligados a uma coleção avaliada em bilhões de dólares que foi escondida pelo negociante de arte de Hitler.
Como milhares de outras famílias judias em toda a Europa, os Deutsch de la Meurthe fugiram desesperadamente de sua casa em Paris para escapar das forças nazistas que marchavam em direção à cidade durante a Segunda Guerra Mundial.
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A devolução finalmente aconteceu em setembro de 2020, quase 80 anos depois, quando Diego Gradis recebeu um pacote contendo quatro pequenos desenhos em sua casa na pequena cidade suíça de Rolle.
As obras de arte ficavam penduradas em uma parede na mansão de seu bisavô em Paris, antes de serem herdadas pela avó de Gradis e mais tarde roubadas pelos ocupantes nazistas durante a guerra. Os desenhos foram parar na coleção privada e secreta de um filho do negociante de arte de Hitler.
“Pilhar obras de arte não apenas priva uma pessoa de um objetivo com valor financeiro, mas também priva uma pessoa de parte de sua identidade”, disse Gradis à Forbes.
Esta é a história de duas famílias, de obras de arte altamente valiosas e de uma correção dos erros da história. Nesta reportagem também iremos entender como os desenhos de Deutsch de la Meurthe finalmente voltaram para os seus devidos donos.
Os Deutsch de la Meurthes
O bisavô de Gradis, Henry Deutsch de la Meurthe, era um industrial francês que fez fortuna no petróleo. Ele morava com sua família em uma luxuosa casa em Paris, no abastado 16º arrondissement.
No final da década de 1890, Henry comprou quatro desenhos de artistas pouco conhecidos para decorar sua casa: dois retratos e duas paisagens, duas em tons de marrom, uma colorida e outra em preto e branco.
Dois desenhos eram assinados pelo artista francês do século 18 Charles Dominique Joseph Eisen, além do “Retrato de uma dama de perfil”, de Augustin de Saint Aubin, e um autorretrato de Anne Vallayer-Coster, uma pintora que tinha Maria Antonieta como mecenas. De acordo com uma avaliação do Ministério da Cultura alemão, as quatro obras valiam modestos US$ 5.575,00.
Henry morreu em um trágico acidente de barco em 1919, quando o motor de sua canoa explodiu enquanto ele tentava consertá-lo.
Os desenhos permaneceram na família até o início da Segunda Guerra Mundial. No início de junho de 1940, a avó de Gradis, Georgette Deutsch de la Meurthe, trocou Paris por Antibes, na região francesa de Provence-Alpes-Côte d’Azur, para se juntar à irmã.
Quando a irmã de Georgette foi presa e enviada a Auschwitz, onde mais tarde foi assassinada, Georgette foi levada por amigos da família para Basileia, na Suíça, e lá viveu no exílio pelo resto da guerra. O pai e a tia de Gradis se mudaram para o Marrocos.
Após a fuga dos Deutsch de la Meurthes, a mansão na capital francesa foi transformada em residência do chefe das forças de ocupação nazistas. Georgette voltou da Suíça para Paris quase imediatamente após a cidade ser libertada pelas Forças Aliadas em 1944. Mas quando ela voltou à sua casa, os pertences de sua família haviam desaparecido. Ela nunca mais conseguiu morar na casa.
“A guerra destruí-la ao levar a vida de sua irmã, de quem ela era muito próxima. Ela nunca se recuperou do que passou”, diz Gradis. “Não havia como voltar a viver em um lugar que havia perdido seu significado.”
Como muitos outros judeus que sobreviveram à guerra, em 1946 Georgette pediu ao governo francês a restituição dos quatro desenhos, alguns móveis da família e outras obras de arte.
Ela morreu em 1987, aos 92 anos, sem nunca ter mencionado os desenhos para ninguém
conta Gradis. Em março de 2018, a família ficou surpresa ao saber das obras por meio da Lost Art Foundation, e chocada com o fato de que o proprietário se apresentou para devolvê-los à família voluntariamente.
Os quatro desenhos haviam feito uma longa e estranha jornada. Durante a guerra, eles passaram de uma família rica com origens judaicas para outra. No entanto, as duas famílias se encontraram em posições muito diferentes durante o conflito.
‘O fardo mais sinistro’
Cornelius Gurlitt era filho de Hildebrand Gurlitt, um dos negociantes de arte mais famosos do Partido Nazista que era responsável por adquirir obras para o Führermuseum idealizado por Hitler.
O governo dos EUA estima que os negociantes de arte nazistas adquiriram um quinto das obras de arte que podiam ser transportadas na Europa entre 1933 e 1945. Após a guerra, Hildebrand escapou de punições pela pilhagem em parte por causa de sua distante ascendência judaica.
Mas em setembro de 2010, o idoso e bem vestido Cornelius foi parado por funcionários da alfândega em um trem de Zurique a Munique. Ele carregava uma quantia de dinheiro grande o suficiente para despertar o interesse das autoridades.
Os guardas de fronteira o denunciaram aos fiscais. Um inquérito sobre suspeitas de evasão fiscal foi aberto, o que levou as autoridades a revistarem seu apartamento, onde fizeram uma das descobertas mais importantes do século 21 para a história da arte.
Quase 1.500 obras, passadas de Hildebrand para seu filho, foram encontradas no apartamento em meio a lixo e latas de comida vencidas. O tesouro de Gurlitt incluía trabalhos de Claude Monet, Pierre-Auguste Renoir e Henri Matisse e foi inicialmente avaliado em mais de US$ 1 bilhão – estimativas mais recentes apontam valores mais modestos.
A história se tornou uma sensação mundial em parte por causa do comportamento bizarro de Cornelius. Conhecido como eremita, ele morava em um apartamento em Schwabing, um bairro nobre de Munique. Ele era tão apegado à sua coleção de arte que levou uma pintura de Monet ao hospital em que ficou internado, diz Shlomit Steinberg, curador do Museu de Israel em Jerusalém.
Até sua morte, em 2014, Cornelius defendeu seu direito de posse sobre as pinturas que lhe foram passadas por seu pai, apesar das origens suspeitas da coleção.
“Que tipo de Estado é esse que expõe minha propriedade privada?”, disse ele, com lágrimas nos olhos, em uma entrevista de 2013 ao Der Spiegel . “Elas precisam voltar para mim.”
Enquanto isso, o dono de outra coleção de arte com uma história duvidosa começou a se sentir apreensivo ao ver o caso de Cornelius ganhar as manchetes.
Depois que a operação policial no apartamento de Cornelius foi amplamente noticiada, em 2013, uma delegacia de polícia no sul da Alemanha recebeu um pedido para coletar quatro pequenos desenhos de uma residência particular, assim como uma coleção de outras peças de arte.
O proprietário misterioso disse aos policiais que ele tinha uma conexão com Hildebrand Gurlitt através de sua filha, Benita (a irmã de Cornelius), e que agora queria entregar as obras às autoridades.
Entre as 22 obras de arte que pertenceram a Benita estavam os quatro desenhos de Deutsche de la Meurthe que haviam desaparecido sete décadas antes.
Benita morreu em 2012, pouco antes de o segredo de Cornelius ser exposto. Mas, ao contrário de seu irmão, ela tinha vergonha da herança de seu pai.
Em uma carta de 1964 para ele, ela escreveu: “Acho que seu legado mais pessoal e valioso se transformou no fardo mais sombrio. Eu tremo de medo toda vez que penso nisso. O que temos está trancado no gabinete ou guardado atrás de cortinas fechadas – ninguém vê [as obras], ninguém desfruta [delas].”
Gradis diz à Forbes que sabe quem entregou a arte de sua família à polícia, mas concordou em manter anônima a identidade da pessoa. Registros da polícia alemã apontam que o dono do apartamento onde as obras estavam era o marido de Benita, Nikolaus Fräßle, um ex-professor de arte que mora em Kornwestheim, na Alemanha.
Testemunhas e mensageiros
Diego Gradis aceitou um convite do governo alemão para ir a Berlim ver os desenhos em setembro de 2018. Na época, eles faziam parte de uma exposição sobre o tesouro de Gurlitt. Gradis mostrou fotos dos desenhos para seu pai, que se lembrava vividamente de vê-los na casa da família antes da guerra.
“Ele ficou muito emocionado. Meu pai tinha 95 anos. É emocionante finalmente receber as obras que pertenceram à minha avó e ao pai dela porque ela não tinha nada, ela perdeu tudo durante a guerra”, diz Gradis.
Os desenhos foram devolvidos à Gradis em setembro de 2020. Eles estão guardados em um cofre na Suíça enquanto Gradis está viajando. Mas ele planeja fazer uma turnê com as peças para que pessoas de todo o mundo possam vê-las.
Não são as obras mais bonitas ou interessantes, diz ele. O seu valor está ligado à história deas. “Elas precisam ser testemunhas e mensageiros disso”, disse ele.
A família teve mais sorte do que a maioria. Os desenhos dos Deutsch de la Meurthe formam quatro das nove peças de arte ligadas à família Gurlitt que foram devolvidas aos seus proprietários originais, de acordo com Andrea Baresel-Brand, chefe do departamento de banco de dados e documentação de arte perdida da Fundação Alemã de Arte Perdida.
O restante das peças, como tantas obras de arte saqueadas durante a Segunda Guerra Mundial, permanecem separadas de seus proprietários. Grupos como a Fundação Alemã de Arte Perdida continuam a trabalhar para identificar os donos originais e devolvê-las. “Isso é o que podemos dar às famílias judias”, diz Baresel-Brand. “Acho que essa é a melhor coisa que podemos tentar fazer”.
Vários museus fizeram exposições com obras de arte que foram supostamente saqueadas para chamar a atenção para a questão. Uma dessas exposições, realizada pelo Museu de Israel, foi popular entre visitantes de todo o mundo, disse o curador Shlomit Steinberg.
“É emocionante mesmo que você não seja judeu”, diz Steinberg. “Só por ser um ser humano, é impossível não se sentir tocado pela história.”
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O post Como uma família judia recuperou obras de arte saqueadas por nazistas apareceu primeiro em Forbes Brasil.