Uma das primeiras vezes em que a pauta igualdade racial entrou na minha vida foi por meio de meu pai, Osvaldo. Chegou em São Paulo com 14 anos, sem sapatos nos pés, e muitos sonhos. Ele costumava contar a história da época em que, sem família e sem esperança, sentia a necessidade de pertencimento. Juntou-se a um grupo religioso e passava de porta em porta “pregando a palavra”, sempre acompanhados de um líder.
Leia mais:O que uma menina de 9 anos tem a nos ensinar sobre propósito?
Após baterem em várias portas sendo recusados constantemente, finalmente uma mulher negra abriu a porta. Ela parecia entusiasmada em receber a Palavra do Evangelho e, com uma voz cordial, convidou o grupo para entrar. O tal “líder”, porém, olhou para o meu pai e disse: “Vamos embora”.
Sua justificativa para ter recusado o convite era que aquela mulher negra não era digna da “Palavra”. Sua cor não estava dentro do perfil buscado. A indignação do meu pai foi tamanha que esse acontecimento acabou por mudar completamente os rumos da sua vida. E, consequentemente, os rumos da minha família. Eu cresci sem qualquer orientação religiosa pois, para meu pai, se religião não era para todos, não fazia sentido algum corroborar com a antítese do senso de comunidade.
Leia mais: Inscreva-se para a seleção da lista Under 30 2022
Trago essa história porque, além da data importantíssima que relembramos hoje, a Abolição da Escravatura, há poucos dias assisti a um filme que me impactou de maneira profunda, da mesma forma que aquela situação teve impacto sobre meu pai. O necessário “Medida Provisória”, dirigido por Lázaro Ramos, retrata uma realidade distópica, em que o Governo Brasileiro aprova um Decreto, que obriga os cidadãos negros a imigrarem para a África.
Obviamente não tenho a pretensão de fazer uma crítica mas, sim, trazer um recorte sobre duas mulheres negras fundamentais não só na trama, mas nos rumos de como esse projeto foi desenvolvido. Refiro-me à professora aposentada Diva Guimarães, intérprete da personagem Elenita, e à prestigiada Taís Araújo, que faz a Capitu.
Desde o início do projeto, Lázaro Ramos tinha a ideia de trazer novas e múltiplas vozes para contar a história do povo negro com um potencial criativo vindo dos próprios personagens. Como o diretor destaca, Medida Provisória é o filme brasileiro com mais negros na frente e atrás das câmeras.
Falar de Dona Diva já seria pauta para uma coluna à parte. A neta de escravizados ficou nacionalmente conhecida após uma participação na FLIP (Feira Literária Internacional de Paraty), em 2017. Da plateia, de onde assistia a apresentação de Lázaro Ramos, tomou o microfone e contou um pouco de sua história sofrida, emocionando não só o ator e diretor, como a todos que estavam presentes. Se você ainda não viu essa cena, recomendo fortemente que você assista ao vídeo após ler esse texto. Desse encontro, surgiu uma amizade com o diretor, que a levou a uma participação especialíssima em “Medida Provisória”.
Dona Diva é enfática ao afirmar que a educação mudou sua vida. Se não fosse pelos estudos, diz que provavelmente nem estaria viva. Por isso, sempre que possível, a ex-professora faz questão de ressaltar: “se você quiser vencer, você vai ter que estudar”. Ou, como definiu em sua participação na FLIP, “o preconceito e o racismo matam. A educação salva”.
Enquanto mulheres precisam provar o seu valor o tempo todo, com as mulheres negras a carga é muito mais pesada. Por isso, a escritora e filósofa Djamila Ribeiro afirma: “A gente não é criada para ser feliz. Parece que você tem que sempre estar triste, não pode celebrar. Quando a gente consegue, em meio a tantas opressões, a tantas imposições, ser feliz, é muito revolucionário. Porque as pessoas não esperam e a gente acha que não merece esse lugar”.
As falas de Dona Diva e Djamila, assim como de muitas outras vozes negras, nos deixam uma reflexão. No Brasil, quem conta a história da escravidão? Em “Medida Provisória”, a personagem de Taís Araújo reivindica: “O Brasil é meu também”. Frase que corrobora com a fala da atriz em “Amor de Mãe”, novela onde interpreta uma advogada bem-sucedida: “A História do Brasil que a gente estuda nos livros, foi contada por quem?”
Na vida real, Taís Araújo, além de principal incentivadora do marido na direção do filme, resume um pouco o sentimento pós-créditos:”Quando acaba o filme, a sensação é de muita esperança e de força. Tem jeito, esse país é nosso, e a gente vai pegar ele pra gente.”
Pela posição que ocupo, e como uma aliada do movimento, sinto que tenho o dever de jogar luz em uma pauta como essa. Ainda que não tenha a vivência em relação às dores pelas quais passam as mulheres negras do nosso país. Apoiar iniciativas como o Cotas Sim, que combate o racismo estrutural no ambiente universitário e concursos públicos, é apenas uma das ações para conseguirmos modificar essa realidade.
A mudança só será possível se todos estiverem conscientes e atentos. Eu acredito que é possível.
Para terminar a conversa desse mês, destaco outra voz negra poderosa, a da ativista Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Por isso, capacite, contrate e acolha mulheres negras (atenção a equidade salarial). Convide-as para conversas, palestras e workshops (escute suas histórias). Consuma seus livros, músicas, filmes e conteúdos. Precisamos enaltecer e dar real visibilidade ao potencial de tantas mulheres negras Brasil afora.
Dados relevantes: Quase metade dos lares brasileiros são sustentados por mulheres, sendo que as mulheres trabalham em média 7,5 horas a mais do que os homens, por semana (Ipea/2021).
Por fim: 1% dos homens brancos de nosso país recebem mais do que todas as mulheres negras, que correspondem a 28% da população do Brasil (Made/USP).
O post “Medida provisória”: uma lição de humanidade em meio ao caos apareceu primeiro em Forbes Brasil.