Desde que começou a plantar o que cozinha, Jefferson Rueda já não trabalha com os ingredientes da estação, mas com o tempo dos ingredientes. Agora, enquanto serve o menu de primavera-verão do A Casa do Porco, único restaurante brasileiro no ranking The World’s 50 Best, na 17ª posição, o chef começa a semear os pratos de outono-inverno. “Hoje em dia eu penso em alface e sei que são 25 dias (de cultivo), penso em tomate e sei que são três meses”, diz. “É bom ter essa consciência de que não é ‘vai ali e pega o tomate’.”
Essa consciência sobre a cadeia permite trazer para o estabelecimento no centro de São Paulo produtos melhores, mais frescos. Traz ainda uma forma de pensar a gastronomia mais conectada com a terra e com os tempos atuais.
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Assim como Jefferson, chefs de outros restaurantes brasileiros premiados têm avançado alguns passos no movimento “do campo à mesa” – que prega um envolvimento direto dos cozinheiros com os produtores rurais – e ido eles mesmos ao campo para produzir alimentos. São nomes como Rodrigo Oliveira (do Mocotó e do Balaio IMS, em São Paulo, e do Caboco, em Los Angeles), Rafa Costa e Silva (do Lasai, no Rio de Janeiro) e Manu Buffara (do Manu, de Curitiba, e do Ella, em Nova York).
No caso de Jefferson, o avanço para o campo foi ao mesmo tempo um retorno à terra natal, São José do Rio Pardo (SP). No início da pandemia, ele e a mulher e sócia, Janaina Rueda, buscaram refúgio com os dois filhos no interior durante os cinco meses em que seus negócios ficaram fechados para o público – além do A Casa do Porco, eles têm o Bar da Dona Onça, a lanchonete Hot Pork e a Sorveteria do Centro.
Em um terreno à beira do rio onde brincava na infância, Jefferson plantou uma horta, montou um galinheiro, cuidou do pomar, transformou o que colhia em receitas – assim como Janaina. Uma cozinha a céu aberto abandonada no meio da propriedade foi transformada em uma espécie de laboratório para o chef praticar sua alta gastronomia de raízes caipiras (e em um treino para uma escola de gastronomia caipira prevista para ser inaugurada no local em 2022).
Quando as restrições pela pandemia diminuíram e os negócios reabriram, os experimentos e os ingredientes produzidos no sítio foram incorporados aos restaurantes. Jefferson dá um exemplo: “Agora estou usando o broto de quiabo, que também tem baba [mas é uma pequena folha, adicionada ao umbigo de porco – um capelete dobrado ao contrário e servido com caldo de legumes tostados, soja fermentada e azeite de urucum]. Nesse contato com a natureza, a gente descobre muita coisa. É presenteado diariamente.”
A produção agrícola (agora com quatro funcionários e consultoria da Aroeira Orgânicos) se soma a outras iniciativas do casal no sentido de controlar toda a cadeia. “Quando a gente fala de um restaurante sustentável, de tendência, não pode mais deixar de falar de produtos orgânicos”, diz Janaina. “Faltava isso.”
Os Rueda já se envolviam na produção de porcos caipiras, associando-se a uma propriedade de São Sebastião da Grama (SP) que fornece exclusivamente para eles animais adultos criados soltos e desenvolvidos para chegar às características de carne e gordura demandadas por Jefferson. Eles também montaram um frigorífico, o Porco Real, para centralizar o processamento da produção para os restaurantes próprios e parceiros.
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A Casa do Porco continua a fazer jus ao nome: o carro-chefe é o porco San Zé, assado à vista dos clientes; e o menu da temporada, chamado “Da roça para o centro”, inclui preparos como flor de copa lombo curada, pancetta com goiabada e sushi de papada com tucupi negro e ameixa fermentada. Mas os vegetais também despontam como estrelas do cardápio, e não só na opção vegetariana. A linguiça caipira é acompanhada de “o que veio da nossa horta”. Os drinks são decorados com flores (e neles não se usa mais açúcar, só mel de produção própria).
Criar um menu, agora, inclui não somente pensar nos pratos, mas no que plantar (e quando) e como manipular e transportar esses produtos. “Quando estou no sítio cozinhando, tenho as melhores coisas, porque tudo é na hora”, diz Jefferson. “Como faço o que eu tenho lá chegar com essa qualidade aqui?” Demanda testes e observação. “Antigamente a gente cortava e lavava os brotos e mandava pra cá. Aí descobri que tenho que trazê-los vivos [com a raiz].”
Nem todos os vegetais, porém, são de produção própria – e a ideia é continuar assim, ou até ampliar a gama de pequenos fornecedores. É uma relação que vai além da compra e venda. “Uma coisa muito bacana é eles saberem onde termina a cadeia daquilo que produzem. E consigo levar para eles a padronização: a folhinha de ora-pro-nóbis que a gente usa, por exemplo, tem que ter de 5 a 6 cm. E isso é mercado, para não ser também aquele orgânico riponga.
OUTROS CHEFS PREMIADOS: RAFA, MANU E RODRIGO
Tem tempo que Rafa Costa e Silva, do Lasai (22ª posição no ranking Latin America’s 50 Best Restaurants e uma estrela no guia Michelin), trabalha com ingredientes cultivados por parceiros e em horta própria. Ou melhor, em duas hortas próprias. O chef, que teve grande parte da sua formação no País Basco, explica: “Uma horta é da família e comecei a trabalhar nela logo que voltamos do exterior, antes de abrir o Lasai, em 2014. E a horta que temos na cidade do Rio foi construída, logo que voltei a morar no Brasil, por mim e minha esposa Malena (Cardiel), que também é sócia e maître do Lasai.”
O princípio de Rafa é não plantar nada que possa ser encontrado no Circuito Carioca de Feiras Orgânicas. Em uma área de 10 mil metros quadrados no Vale das Videiras (RJ), ele produz pepino-melão, cenoura branca, quiabo roxo, beterraba amarela e outros alimentos que não se acham facilmente por aí, além de criar galinhas que fornecem ovos para o restaurante. Mantém ainda plantios experimentais em uma área de 700 metros em Itanhangá (zona oeste do Rio). E faz parcerias com produtores locais. “Troco sementes com eles a fim de desenvolver novos produtos que eu possa introduzir no menu e para que eles possam aumentar a renda e a diversidade de produtos.”
Em Curitiba, Manu Buffara ajudou a organizar a produção em hortas comunitárias urbanas de onde compra parte das verduras, dos legumes e das frutas usados em seu restaurante Manu (49ª posição na lista da América Latina do World’s 50 Best). Nascida em Maringá (PR), ela leva para suas criações gastronômicas, para fornecedores e para os programas municipais o que aprendeu vivendo no campo. “Em uma das hortas, o trabalho foi desde o começo. Junto com a universidade federal, a gente montou a terra, conseguiu a doação de sementes e ensinou quando colher”, diz.
Para aplicar sua visão também à agricultura, Rodrigo Oliveira, do paulistano Mocotó, recentemente começou o cultivo de alimentos em uma propriedade em São José dos Campos. “É o novo filho do Rodrigo”, brinca a mulher do chef, a historiadora Adriana Salay. “Foi um achado. Estamos há um ano lá. São 16 alqueires, um terço dessa área de mata preservada.”
Os primeiros frutos, ou melhor, hortaliças, produzidas no sistema orgânico, já foram colhidos e ajudaram a abastecer a cozinha do Mocotó e o projeto Quebrada Alimentada, que, desde o início da pandemia, distribuiu mais de 80 mil marmitas para a população do entorno do restaurante, instalado na Vila Medeiros (zona norte de SP).
Pela atuação social, o casal recebeu em novembro o “The Macallan Icon Award”, categoria Pasado y Futuro!, concedido pelo Latin America’s 50 Best Restaurants 2021 (o restaurante também foi apontado pelo prêmio como o 23º melhor da região). “No restaurante a gente não faz comida, a gente processa comida, mistura coisas”, diz. “A ideia é criar um laboratório rural, até para conseguir dialogar com os fornecedores com mais conhecimento de causa. Mas o sítio não tem a pretensão de substituir essa cadeia tão poderosa.”
Reportagem publicada na edição 92, lançada em dezembro de 2021.
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