A “Rota Gastronômica do Vale do Paraíba e Serra da Mantiqueira” passa por 16 municípios do estado de São Paulo, em uma região de morros e montadas coalhadas de propriedades rurais. Criada no final do ano passado para promover as delícias produzidas nessa região, quem se aventura pelos cerca de 30 estabelecimentos, entre fazendas, chácaras, pousadas e lojas de vendas de produtos locais, encontra doces, cervejas, queijos, azeites, cogumelos e uma exclusividade.
Na pequena Santo Antônio do Pinhal, de cerca de 7 mil habitantes e a mil metros de altitude, está a única sorveteria da rota que vende sorvetes produzidos no próprio local: uma fazenda centenária. E mais, o sorvete é de leite de vacas jersey, raça inglesa originária nas Ilhas Jersey, localizada no Canal da Mancha. No Brasil, a raça chegou há mais de um século e é uma estrela pela qualidade de seu leite com alto teor de proteína, cálcio e boas gorduras.
Os “gelatos da fazenda” estão no Sítio Aconchego, de 80 hectares, do empresário Marcos Galvão, 55 anos, que em 2011 trocou a vida de executivo na capital paulista, a 170 quilômetros, para ser produtor de leite e sorvetes. Mas ele não começou do zero. O Sítio Aconchego, que pertencia desde 1989 ao casal de alemães Heinz e Claudia Thielemann, na época já produzia sorvetes de leite de jersey com a marca “Eisland – Gelatos da Fazenda”. Do alemão, Eisland significa “terra do sorvete” e é uma homenagem do casal à sua terra natal
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Galvão assumiu o negócio com o objetivo de revolucionar a pequena propriedade e mostrá-la além da sua porteira. Ele sabia que histórias não faltariam. Não por acaso, em 2020 inaugurou a “sorveteria da fazenda” na capital paulista, numa ruazinha pacata do bairro do Campo Belo. Estava ali a ponte campo-cidade, uma das etapas de seu projeto. “O mercado consumidor da época não absorvia toda a produção que eles tinham”, diz Galvão, se referindo à fabriqueta de sorvetes construída pelos Thielemann, muito próxima da criação das vacas. Os visitantes podem vê-las pastando, enquanto apreciam um gelato escolhido entre os cerca de 27 sabores, a depender das frutas da época, como mascarpone com goiaba, torta de laranja, nata e maçã com canela.
Aliás, é justamente um passeio pela propriedade rural que leva ao entendimento de por que as vacas jersey são as responsáveis diretas pelo sucesso do negócio. O sítio, que já entregava o leite para laticínios da região, em 2004 passou a produzir leite do tipo A, aquele que sai do úbere da vaca e sem contato manual passa por pasteurização e imediatamente é envasado na própria fazenda. “Então, em 2007 [os Thielemann] tiveram a ideia de parar a produção de leite engarrafado e buscaram uma alternativa, a produção do gelato”, conta Galvão. Atualmente, são produzidos até 600 quilos de sorvetes por mês.
Meu reino por uma casinha no campo
A história de Galvão com a família Thielemann começou muito antes da ideia de comprar um sítio de vacas sorveteiras. Executivo por 24 anos em multinacionais, como a fabricante de vidros Corning e a Kimberly Clark, de higiene pessoal, Galvão se mudou para a região da Mantiqueira em 2011, acompanhando o movimento de muitos paulistanos de fugir do “ciclo vicioso” da cidade. “Comprei um sítio que ficava vizinho da fazenda”, afirma. “Passei a consumir os produtos e percebi como tudo era diferente. Para quem era da cidade, era muito curioso entender o porquê dos ovos caipiras daqui terem tanta cor de abóbora.”
Galvão se aproximou do estilo de vida no campo justamente quando o casal Thielemann pensava na aposentadoria. Daí, para se tornar um produtor rural, foi um pulo. “Na hora, para mim, foi um susto”, diz ele. “Porque assumir a fazenda com todas as atividades, desde a plantação para a alimentação dos animais, até a própria produção de leite, foi um desafio, mas acabou que me reencontrei.” A identificação é tanta que hoje o dono da Eisland também participa de atividades no município. Nos últimos dias, estava junto com a Defesa Civil para desenvolver um plano emergencial destinado aos afetados pelas fortes chuvas que caem desde dezembro.
O ex-executivo assumiu o Sítio Aconchego com uma ideia na cabeça: fazer o negócio crescer com base em uma das metodologias que conheceu nas multinacionais em que trabalhou. Adotado por empresas como Toyota, WEG e outras, o método Kaizen — palavra de origem japonesa que significa mudança para melhor —, é baseado em uma estratégia simples e focada, visando o aumento da produtividade.
E foi o que Galvão fez: mudou todos os ingredientes industrializados e passou a utilizar produtos encontrados em sua propriedade. Nessa etapa, contou com a ajuda vital de sua esposa, a confeiteira Renata Galvão, para desenvolver substitutos naturais para a base neutra do sorvete e os concentrados italianos, dois ingredientes vitais para a produção de um gelato. “É totalmente viável aplicar essa ferramenta, independente do tipo ou tamanho do negócio”, diz ele sobre a melhorias adotadas por meio do método Kaizen.
Para Galvão, começava aí um plano de diferenciação no mercado. O Brasil possui cerca de 10 mil empresas de sorvetes, responsáveis por movimentar até R$ 13 bilhões anualmente, segundo dados da Abis (Associação Brasileira das Indústrias do Sorvete). Contudo, um dos principais desafios das sorveterias é o consumo fora das épocas quentes. Foi então que colocou duas metas. A primeira foi criar diferentes sabores de gelato, para aumentar as vendas. Na segunda, focou em diversificar as ofertas da casa com a produção de outras guloseimas, como apfelstrudel, brownies e geléias, todos produzidos com ingredientes da fazenda.
Medidas para tornar a propriedade mais sustentável também entraram na lista de tarefas. Da área total do sítio, 20 hectares são destinados ao plantio de milho caipira e aveia para a alimentação dos animais, mais o pomar e as pastagens. O restante, 60 hectares, são de mata nativa preservada. “Cuidamos da terra com adubação verde, reutilizamos todo o esterco das vacas e fazemos a compostagem com os restos de frutas e alimentos para produzir os dois tipos de cultura.”
Os 60 bovinos jersey que compõem o rebanho são manejados em sistema de pastagem e gerados na própria fazenda, a partir de inseminação artificial. “Temos apoio da Associação de Criadores de Gado Jersey do Brasil para conseguir uma melhoria genética dos animais”, explica o proprietário da marca Eisland. A mais recente lição do fazendeiro sorveteiro foi, justamente, ter aulas de inseminação artificial. A técnica, utilizada em cerca de 20% do rebanho brasileiro de 200 milhões de bovinos, é uma das ferramentas para acelerar o melhoramento genético nas propriedades rurais.
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