Aquele tipo de solução que consegue resolver dois problemas de uma vez só costuma ser um achado nas empresas. Quem dirá aquelas que resolvem três. Para driblar a falta de profissionais no setor de tecnologia que se agravou na pandemia, empresas têm investido forte em cursos de capacitação gratuitos e abertos.
Ao mesmo tempo que podem formar futuros empregados, elas ganham em publicidade e conseguem aumentar a diversidade. Para 2022, o fenômeno de formação de mão de obra com base em iniciativas do setor privado deve ganhar força. Isso porque o chamado déficit de profissionais de tecnologia continua a crescer.
Há pelo menos cinco anos, o aumento da digitalização das economias mostrava que a demanda dessas profissões era maior que a oferta. Com a pandemia, este déficit piorou e diversas empresas têm começado a investir na educação das comunidades e setores em que atuam.
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Apesar de não ter dados sobre a formação de profissionais por meio de bootcamps, dentro das empresas e edtechs, Sergio Paulo Gallindo, presidente da associação de empresas do setor Brasscom, acredita que o mercado ouviu o alerta da falta de profissionais.
Os diversos cursos focados na capacitação rápida de mão de obra estariam tapando parcialmente o buraco de talentos. “Vendo o desafio que já tinha o setor, na prática deveria estar colapsando”, comenta ele. “A capacitação é importante e deve continuar acelerando”. Projetado inicialmente como um déficit de 260.000 profissionais, a Brasscom viu um aumento de empregos no setor em 2021 superior ao cálculo de 2019. Até setembro, a associação registrou 123.544 novos empregos no setor de TI. A projeção anterior da demanda para o ano era de 56.693 cargos. Para 2025, a demanda de profissionais de tecnologia deve chegar a 797.000 empregos.
Para o banco digital Nubank e o varejo Mercado Livre, houve um disparo de vagas abertas para este tipo de profissional neste ano. No banco foram mais de 700 abertas. Já no Mercado Livre foram dez vezes mais só no Brasil, cerca de 7.000 oportunidades. Para preencher isso, o Mercado Livre foi às ruas treinar as pessoas: abriu cursos de logística na região de Cajamar (SP), onde tem um centro de distribuição, e mais de 2.500 bolsas de um curso online de desenvolvimento.
Centro de distribuição do Mercado Livre em Cajamar (SP): empresa abriu curso de logística na cidadeLeandro Fonseca/Exame
O curso de dois anos teve metade das vagas reservadas para mulheres e minorias. As principais demandas do Mercado Livre costumam ser logística, tecnologia e serviços financeiros. Hoje, a empresa tem mais de 16.000 funcionários. A gerente de sustentabilidade do Mercado Livre no Brasil, Laura Motta, entende que a empresa ganha quando faz essas capacitação para as comunidades porque já tem expertise. “O comércio eletrônico foi um dos setores da economia que mais cresceram nos últimos dois anos e esse ritmo deve se manter. Por outro lado, a mão de obra não cresce na mesma proporção. Esses projetos de educação integram a estratégia de responsabilidade social nos principais mercados em que a gente atua e contam com a nossa expertise. Isso traz agilidade e credibilidade a quem estiver formado”.
No caso do Nubank, que hoje tem 5.400 funcionários — salto de 90% em dois anos — a estratégia de treinar a comunidade acontece principalmente em Salvador, cidade onde o banco digital tem uma hub de tecnologia. Mais de 100 programadores devem ser formados agora neste primeiro trimestre de 2022.
Para o novo vice-presidente de recrutamento do banco, Phil Haynes, o movimento deve continuar. “Esses programas são muito importantes, não apenas para o crescimento do Nubank mas também para o setor de tecnologia em geral no Brasil. Por isso acreditamos que ao alcançar a comunidade, atraindo pessoas que têm um interesse nessas áreas, contratando-as e desenvolvendo-as internamente, o que estaremos fazendo é cultivando próximas gerações de tecnólogos para o Brasil, Cidade do México, na Colômbia. É uma grande parte da nossa estratégia. É uma oportunidade para nós demonstrarmos nossos valores.”
A fintech Ebanx tem um propósito claro de desenvolver o mercado de tecnologia da capital do Paraná, Curitiba. Por lá, as ações educativas não costumam ter uma trilha para absorção direta dentro da própria empresa. Segundo Michelle de Cerjat, coordenadora de comunidade do Ebanx, a ideia é melhorar o ecossistema. Nos programas oferecidos, a média da absorção é de apenas 15%.
“Esse tem de ser o mindset das empresas. Vamos formar não para colocar aqui dentro, mas para todo mundo. E formar pessoas que não consideram essas carreiras de tecnologias, negros, trans. É uma mentalidade de puxar o ecossistema. Na pandemia, a gente viu que está todo mundo conectado. Meus KPIs não são de pessoas contratadas, mas do número de pessoas impactadas”, diz. No mês de dezembro, a empresa abriu as inscrições para um curso de programação de seis meses para pessoas com vulnerabilidade social em Curitiba. Elas vão ganhar um notebook e uma bolsa de 1.000 reais mensais.
O unicórnio de Curitiba está se preparando para abrir seu capital em 2022 em uma operação que pode avaliar a empresa em mais de 10 bilhões de dólares, segundo apuração da Isto É Dinheiro. Com os programas de educação, já foram impactadas 47.000 pessoas com programas de educação como a plataforma de palestras Code Your Way, com o módulos de disciplinas Ebanx F5 e o curso de introdução à programação Girls 4 Tech.
Pela primeira vez, neste mês de janeiro, a Globo criou um programa para treinamento de desenvolvedores. São 40 vagas gratuitas, com um curso remoto, para candidatos de todo o país. Na empresa, a ideia também é oferece abraçar negros e mulheres: 50% das vagas são para eles.
O especialista em educação Rafael Sanchez entende que esses investimentos das empresas têm retorno. “A criação de cursos de formação em tecnologia e as empresas arcando com esses custos de formação de talentos vieram para ficar. Faltam profissionais no mercado e é menos custoso para a empresa fazer o investimento nas pessoas do que ficar sem a mão de obra.” Além de resolver três problemas de uma vez, o movimento se alinha até com outra tendência vista nos últimos anos. O currículo não tem mais tanta força, e sim habilidades comportamentais e o candidato deu match com a cultura da empresa. Tudo o que for técnico, deixa que a empresa ensina.