Por que o medo de uma repressão estatal ao bitcoin é exagerado

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Marvin Recinos/AFP/Forbes

Uma mulher faz compras em uma loja que aceita bitcoins em El Zonte, na região La Libertad, em El Salvador

Um comentário frequente sobre o bitcoin é que, se ele tiver sucesso, inevitavelmente incentivará a criação de leis e regulamentos para aboli-lo. Essa tem sido uma espécie de crítica indireta feita por investidores como Ray Dalio, que estão “do lado do bitcoin”, mas temem que seu sucesso atraia a atenção dos poderes constituídos.

Não se trata de um medo totalmente incompreensível ou irracional. Já se passaram séculos desde o estabelecimento do Estado-nação como um todo-poderoso centro de assistência social, força militar e tributação. É claro que, muitas vezes, os poderes do Estado são refreados apenas por restrições “políticas” (e não físicas ou técnicas). Será que os governos poderiam abolir o bitcoin, se quisessem?

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Isso é provavelmente muito mais difícil do que se possa imaginar. O bitcoin é um tanto resistente a repressões governamentais devido à sua origem e à configuração de sua rede. Embora os Estados provavelmente pudessem causar algum dano ao bitcoin se isso fosse um objetivo central dos governos em geral e se eles tivessem foco suficiente, há muitos fatores que explicam por que uma “repressão governamental” ao bitcoin é exagerada em termos de destruir a rede.

1 – O bitcoin requer coordenação em larga escala entre muitos organismos multilaterais e Estados

Como o bitcoin é internacionalizado, isso exigiria consentimento e coordenação entre quase todos os Estados-nação para efetivamente reprimir o bitcoin. Embora as grandes potências mundiais (como os Estados Unidos e a China) tenham um efeito de bloco e tenha havido mais coordenação (geralmente liderada pelos EUA) em questões como a mudança climática e as alíquotas de impostos corporativos, quando se olha para questões tão diversas quanto a Covid-19 e o olho por olho, dente por dente de “rivais estratégicos” e boicotes às Olimpíadas, ainda é difícil ver os países focando no bitcoin de modo sincronizado.

Uma coordenação em larga escala seria necessária para desligar a rede de maneira efetiva; caso contrário, as pessoas poderiam realizar transações e dar suporte à rede do bitcoin em outros países ou mesmo no espaço. Uma lenta proibição país por país pode afetar a rede: em uma situação extrema, uma improvável proibição capitaneada pelo governo nos Estados Unidos poderia eliminar o bitcoin dos mercados e sistemas financeiros liderados pelos norte-americanos, com alcance quase total no mundo. No entanto, enquanto o bitcoin fosse transacionável em outros Estados, não seria possível concretizar uma “proibição global” nem uma “repressão governamental”.

2 – Não existe uma entidade central que os Estados possam pressionar

Um dos aspectos mais singulares do bitcoin é que não existe a figura de um líder central. O desaparecimento de Satoshi e a morte prematura de Hal Finney levaram a uma situação na qual não há um “CEO da empresa” ou algum outro líder central a quem recorrer. Embora existam pontos de pressão que os países podem usar para perseguir seus objetivos (por exemplo, concentração física de mineradores, colaboradores técnicos importantes ainda limitados por fronteiras), não existe um ponto central, mas, sim, um conjunto de pontos difusos. 

Vimos isso quando a China proibiu a mineração de bitcoin em seu território: isso significou o fim do bitcoin? Não. Os mineradores simplesmente levaram seus equipamentos a outros lugares e, em questão de meses, a taxa de hash estava tão alta quanto antes, senão maior.

Os Estados não estão acostumados a lidar com organizações como essa. Eles estão acostumados a lidar com empresas multinacionais em certa medida, mas geralmente há um conjunto de pontos de pressão e de liderança centrais que um Estado pode utilizar para fazer com que a empresa respeite determinados regulamentos e regras. É muito improvável isso acontecer com quaisquer ataques à rede do bitcoin, devido à atípica história da criação da criptomoeda.

3 – Código de programação são uma forma de expressão

Nos Estados Unidos, os programas de computador são considerados uma forma de expressão “protegida” – o código-fonte do software que está por trás do bitcoin é protegido pela Primeira Emenda, que resguarda o direito à livre expressão. 

Para atacarem a distribuição do código do bitcoin, países como os Estados Unidos teriam de fazer mudanças fundamentais em si mesmos e quebrar pactos de longa data referentes à limitação do poder e ao Estado de Direito. Isso não é impossível. 

O bitcoin, em um horizonte temporal de décadas e até mesmo de séculos, é uma aposta de que (algumas) restrições técnicas são melhores do que as puramente políticas para manter o estado de direito. Mas seria muito contraditório e provavelmente insustentável do ponto de vista político.

4 – Os Estados podem ser induzidos pelo bitcoin por questões comerciais e outros motivos

A Internet poderia não ter sido nunca criptografada – de início, foram impostos controles de exportação sobre a criptografia, e os usos comerciais da rede eram vistos com ceticismo. Porém, os Estados cederam parcialmente quando as possibilidades comerciais da Internet ficaram claras. Hoje, a criptografia é usada nas comunicações, bem como nos serviços bancários online e no comércio eletrônico. Isso não é algo de que os Estados gostem: a aliança dos Cinco Olhos e os países aliados querem eliminar a criptografia de ponta a ponta, e Estados autoritários, como o chinês, têm portas dos fundos ou outros mecanismos para fazer controle social. Ainda assim, parece que, quando confrontados com algo que pode ameaçar a segurança nacional, a necessidade dos Estados de mostrar os resultados do PIB e distribuir riqueza à sua população pode prevalecer sobre suas preferências em outras áreas.

À medida que mais e mais países adotem o bitcoin de alguma forma, essa pressão aumentará até que, talvez, um dia, possamos ver surgir um bloco de países favoráveis ao bitcoin, semelhantemente ao Grupo de Cairns com relação à agricultura. Alguns descobrirão que sua geração de energia interna é analisada de maneira mais eficiente por meio de bitcoins de código aberto do que apoiando as reservas fracionárias de outros países. Quanto mais Estados passarem a apoiar a rede do bitcoin, mais difícil será outros Estados a atacarem.

5 – O modelo de ameaça ao bitcoin há muito inclui poderes no nível dos Estados

A maneira pela qual o bitcoin é implementado torna (mais) proibitivo qualquer conjunto centralizado de computadores perturbar o sistema.

Com mais de 170 mil PH/s de taxa de hash protegendo o sistema (na data em que este artigo foi escrito) de um ataque coordenado de 51% (em que um invasor pode assumir o controle do sistema e propagar gastos inválidos a fim de derrubar o sistema para os usuários legítimos ou de se beneficiar financeiramente), um orçamento de segurança calculado em cerca de US$ 45-60 milhões por dia e partes interessadas suficientes (investidores, colaboradores de programação, firmas de análise, mineradores e empresas – e agora governos – que aceitam bitcoin) que investiram seus meios de subsistência no monitoramento da cadeia de modo que o bitcoin possa ser seguro para além de sua dinâmica fundamental, o bitcoin é grande o suficiente para garantir recursos substanciais contra qualquer ataque, recursos estes que não estariam disponíveis para nenhum Estado-nação e que teriam de ser aplicados continuamente, de modo que seria difícil ocultar a identidade do invasor.

Vivemos em uma época estonteante na qual o “dinheiro mágico da Internet” de repente virou uma preocupação para leitores de Clausewitz do mundo todo. À medida que o bitcoin se torna mais proeminente, a possibilidade de atrair poderes estatais para perturbá-lo ou cooptá-lo totalmente aumenta. Contudo, quem desempenha algum papel na rede, seja investindo, seja transacionando, seja dando suporte à infraestrutura dela, pode ter a certeza de que o sistema tem algumas propriedades inerentes que o tornam mais resiliente do que você imagina, mesmo contra os ataques mais fortes.

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